terça-feira, 30 de outubro de 2018

Sobre a lucidez

ontem eu estava lendo um livro de Leonardo Boff e, como sempre, admirando a sua lucidez, sua amorosidade, a aguda percepção que ele tem de tantos problemas cruciais de nosso tempo. nestes dias que pesam como chumbo sobre nós, com os milhões de pessoas que ignoram qualquer compaixão, são autoritárias, violentas e incapazes de um raciocínio mais detido, fiquei pensando no desperdício a que elas se propõem ignorando um pensador como Leonardo Boff.  mesmo se o lessem, seriam incapazes de vibrar na nota de preocupação pelo ambiente, a globalização, a espiritualidade, a forma de se articular da igreja e outros temas do grande autor. será que ele se sente muito só quando escreve e quando expõe suas ideias? para a grande maioria, ele passa despercebido, mas isso não aconteceu a tantos que avançaram sobre sua época e se propuseram a pensá-la com lucidez e carinho?

                                                                Igor Zanoni

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Insistência


os amores antigos têm o dom
do costume e da insistência
nunca direi adeus
à sua posse sobre mim
há tanto por não deixar
ainda que aflito o coração
ainda que inseguro
os amores antigos me retém
na sua mão fechada
há tanto por não perder
ainda que não ganhe
insisto na procura sem fim
em promessas vãs
tenho medo de deixar
o que não tenho

                                                             Igor Zanoni

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Contra o moinho satânico


como uma norma de reprodução social, o capitalismo deveria prover emprego digno e salário decente a todos com idade e condição de trabalhar. é evidente que isso raríssimamente acontece, na verdade o capitalismo promete emprego e entrega desemprego, promete fartura e entrega escassez e pobreza, e isto por sua natureza intima de contradição entre o capital e o trabalho e por sua forma de movimentar-se. isto exigiu historicamente a assunção pelo Estado de um conjunto de políticas públicas que remediasse esse não cumprimento de promessas. incluem-se aí gastos sociais e produtivos, política monetária ativa barateando o dinheiro, criação de empresas públicas, leis trabalhistas, a criação de um sistema de bem-estar para a maioria, políticas de renda mínima e de aposentadoria e outras. no momento em que se assiste a uma crise do capital, como ocorre desde há algumas décadas e em especial desde 2007-2009, assiste a uma tentativa em muitos países de abandonar esse aparato e desregulamentar a economia via privatizações, finanças sadias, erosão das leis trabalhistas e tudo que poderia significar justiça social. nisto consiste o chamado neoliberalismo praticado nos Estados Unidos, vários países da Europa, Argentina ou, como sabemos, entre nós brasileiros. o problema é que tudo isto acentua o açoite do capital sobre o conjunto da sociedade, sem melhorar as condições sistêmicas em que opera o capitalismo. a oposição ao neoliberalismo não é, como muitos ingênuos ou mal-intencionados pensam, socialismo, mas uma forma de lidar com o moinho satânico do desemprego, da privação e do autoritarismo.

                                                                 Igor Zanoni

Chorar

talvez eu chore
o choro sobrevém como um solavanco
não posso me preparar para ele
abrindo antes a porta para o conhecimento
do que tanto me fere
o choro não equivale a desespero
ao sinal de que tudo se acabou
retornarei com paciência e força
retornarei com alegria e ironia
mas por um tempo talvez eu chore
tenho o direito e o dever
de chorar pelo que aí está
este direito exercerei
sobre a paisagem desolada
sobre sua inutilidade e futilidade

                                                             Igor Zanoni

terça-feira, 23 de outubro de 2018

O grande livro


ele encontrou um livro de um grande poeta, seus poemas completos, em boa edição, até valorizou a estante quando o colocou entre outros volumes no lugar onde guardava poetas. um livro assim deveria ser lido com cuidado, paciência, não era possível sair virando estabanado suas folhas e pescando uma coisa aqui outra ali. na verdade era antes preciso estudar o livro, como fazia com os que precisava ler para a faculdade. era preciso encontrar um tempo que permitisse dedicação, como as férias, quando viessem. havia sempre outros livros imprescindíveis, sobre os assuntos do mundo, a serem estudados, ler um poeta era algo um pouco excêntrico, demandava coração e inteligência, uma fineza da alma. sobretudo tempo, quando o ócio permitisse na casa sossegada perder, por exemplo, as férias em ruminação serena. guardou sim o livro na estante, sempre o olhava pensando, um dia ajustaremos nossas contas, e ficava feliz sendo um possuidor de um livro tão precioso. um livro até caro, bem encadernado, distinguia-se entre os outros. mas como as tais férias excepcionais não viessem com sua coleção de pré-requisitos, e faltasse disposição para um empenho menos exigente, o livro foi ficando ali, muito bonito, apanhando a poeira da sala. até hoje, tanto tempo se passou, está ali.

                                                  Igor Zanoni