segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Dados


você têve um dom extraterrestre
para o que tocava
para sua proximidade
e sua defendida intimidade
mas como tantos entre nós
têve também um dom excessivo
para sofrer
nada te aliviava nem mesmo
seu talento e sua visão das coisas
uma noite você tentou
mais do que era prudente
podia ter acontecido
com qualquer um de nós
em parte aconteceu comigo
em tudo decerto estou contigo
algum de nós precisava dizer basta
e os seus dados foram escolhidos

                                        Igor Zanoni

domingo, 30 de dezembro de 2012

Kierkegaad


Para mim, que conheço superficialmente filosofia e estou lendo pela primeira vez Kierkegaard (As Obras do Amor-Considerações Cristãs em Forma de Discursos), arrisco-me a fazer algumas considerações sem pretensões senão a de esclarecer para mim mesmo o texto e convidar a lê-lo quem se interessa pelo cristianismo e deseja fugir da Bíblia como um manual auto explicável. O amor é exaustivamente pensado como uma obrigação divina e uma iluminação interior. Explico. A medida para amar o próximo é amar a si mesmo, ou na medida em que se ama o próximo deve-se amar a si mesmo. Esse mandamento que condensa a mensagem cristã tem assim via dupla, e se abre numa síntese que é o amor a Deus. Por outro lado, se alguém diz que não pode amar “o homem”, mas sim este ou aquele homem, isto deve ser verdadeiro para o amor a todos os homens e, portanto não apenas a indivíduos particulares, mas a um “homem “genérico, síntese de todos os outros dos quais procede e ao qual aqueles remetem. No que se refere ao amor entre um casal, mesmo que nada se modifique exteriormente, e se considere, como diz Paulo, o homem a cabeça do casal, a submissão da mulher ao homem e o dever do homem respeitar sua mulher e não irritá-la, ao mesmo tempo o amor entre ambos, sendo um amor cristão, ilumina a relação e a transforma desde dentro, de modo que já é de outro amor de que se fala . Novamente uma polaridade e uma síntese. Assim procede o autor, num modo de pensar que se inspira na dialética de Hegel e privilegia o viver humano como viver e transformar o mundo, ainda que este aparentemente não se altere. Os exemplos se multiplicam e esclarecem a cada momento o que é afinal o amor, considerado em suas obras. Porque é nestas obras que afinal se dá a conhecer, partindo da vida de cada um e de suas relações, com o próximo, consigo e com Deus. Coloca-se este em último lugar, apenas porque para Kierkegaard não se pode amar o “Invisível” sem amar o que é “visível” e está ao nosso lado. O amor transforma as relações do ser humano com outros desde a forma como compreende e se dispõe a viver o amor, isto é, desde a forma como vê o outro e se dispõe a amá-lo. É uma obrigação que revoluciona o que está aparentemente imutável. Na verdade não se conserva imutável porque para cada um tudo ao redor muda, a partir de sua própria essência cristã, obedecida e conquistada. É um autor que se põe contra o status quo, no qual se entrevê uma linha de pensamento que parte do viver de cada um, de sua existência, que o amor em sua exigência revoluciona.

                                                Igor Zanoni

Romances


há romances bons, verossímeis ou até bem documentados, nos quais os personagens são coerentes, bem construídos. nesses romances há tudo que o público em geral, embora aqueles não se dirijam a este, espera ou sente prazer: diálogos tensos, relacionamentos difíceis, cenas de amor e sexo originais e prazerosas, política de uma época ou ainda atual, e assim por diante. Acho que um bom exemplo são os romances, com trabalhado tecido histórico, do português Miguel Sousa Tavares, Equador ou Rio das Flores. No primeiro, o tema é o final da escravidão na última colônia português a mantê-la, as ilhas de São Tomé e Príncipe, no golfo da Guiné, sob pressão inglesa, no início do século XX e final da monarquia lusitana. Cerca esse tema as desventuras do governador da ilha, recém-designado por Dom Carlos e um dândi liberal que quer abolir a escravidão de fato, embora os plantadores locais queiram mantê-la, e Portugal apenas disfarçá-la . No segundo a estrutura da narrativa é parecida, com o tema do salazarismo e do franquismo eclodindo na península ibérica e seus diferenciados impactos sobre latifundiários, um povo comum cansado da república com suapolítica turbulenta e finanças mal controladas. são livros bons, que recomendo, mas há diferença entre um livro bom e um grande livro, com o pathos de Juan Carlos Oneti, Robert Arlt, Faulkner ou os maravilhos contos de Guimaraes Rosa de Corpo de Baile ou Noites do Sertão, com sua violência latente e suas veladas relações de poder na sociedade agrária mineira.

                                                   Igor Zanoni

sábado, 29 de dezembro de 2012

Sábado


quando os violentos
 se tornarem amorosos
os avarentos
mudarem-se em generosos
quando os mentirosos
disserem com cuidado a verdade
e quem fere
sentindo a dor do ferido
passar a amar
então poderemos
comemorar o sábado
um rabino contou a estória
de que estamos na tarde de sexta feira
e o trabalho de Deus
agora repartido com os homens
está inconcluso
por isso a natureza geme
com as dores de parto
do que mais tarde seremos
quando afinal pudermos
comemorar o fim da criação

                                            Para meu irmão Siddhartha

Igor Zanoni 

Veja e leia


veja, leia, daqui a dois minutos
mudaremos a foto e a manchete
mas a notícia será a mesma
uma morte violenta aconteceu
os ricos escolhem onde morar
em lugares que você pode saber
por alto mas nunca visitar
há mais mulheres famosas nuas
a corrupção é velha como o Brasil
mas aqui apontam-se novos nomes
ainda que das mesmas famílias
o salário mínimo subiu mas bem pouco
o Minha Casa Minha Vida bate recorde
de construções
mesmo que você não queira morar
 em uma delas
a Previdência atinge novo défit
e compromete a meta do superávit fiscal
mas os bancos vão não ficar
sem dinheiro do orçamento
você não é ninguém se não for famoso
o facebook é feito de uma alegria
que não dura
tudo precisa ser rapidamente renovado
mas nunca será para valer

                                                  Igor Zanoni

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Dorflex


ela se foi deixando
suas caixas de comprimidos
pensei em devolvê-los
mas evitei novo contato
além disso pode ter sido
uma aposta inconsciente
de que sem mim eles seriam
dispensáveis
parece que ela começa
com otimismo uma nova vida

                                                         Igor Zanoni

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Sonhos


explicitação mas como problema
 do implícito
que exige outras explicitações
infinitas e infinitesimais
mas às vezes de fácil decifração
como um enigma para crianças
outra vezes truncados
de refinada secura
memórias que se vestem
para um baile de máscara
poucas vezes feliz
tormentos noturnos
coágulos da verdade
que de dia vivemos
mas não vemos com clareza
apologia da nossa vida verdadeira
porque há nos sonhos
esta revelação do agreste?
que rara vezes somos felizes
e os sonhos destroem
nossa ilusória felicidade?

                                             Igor Zanoni

domingo, 23 de dezembro de 2012

Reatar


gostaria de reatar com muitos
antigos amigos e amores
as ilusões da vida
segredos planos desejos
mas isto levaria muito tempo
demandaria uma delicadeza
que eu não sei se tenho
tomaria um tempo enorme
do meu trabalho da minha família
da necessidade de repousar
que aumenta na minha idade
mas não se trata apenas de tempo
ou idade
criamos uma vida
que não podemos viver por inteiro
mas aos fragmentos
como meteoros riscamos o céu
da vida de muitos
mas somos apenas fragmentos
que caem longe de tantas vistas
ou se incendeiam
no ar opaco que para nós todos
é vital

                                                             Igor Zanoni

                        

sábado, 22 de dezembro de 2012

Banalidades


não gosto de banalidades
muito menos de pessoas banais
converso melhor com o jardineiro
que com muitos colegas professores
o sentido da vida não é dado
pela posição que alguém ocupa
e que se esforça por alcançar
não é dado pelo seu lugar
na política e na sociedade
nem pela beleza de sua mulher
o que mais chama a atenção
 em uma mulher
é sobretudo sua inteligência
e seu humor
não convém ser muito gordo
mas jamais farei fila
na hoste dos cultivadores da magreza
como sinal de beleza
e de alguém desejável
não me guio por desejos comprados
meus desejos faço á mão
o amor é um artesanato paciente

                                                                Igor Zanoni

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Sedução


há belezas que paralisam e comovem
olhar fixo de uma serpente atenta
não é necessário que seduzam
invertem os polos da terra
rompem com uma adaga
ligações e compromissos
é impossível defender-se
há muitas coisas das quais
não podemos nos defender
melhor a prudente entrega
feliz como um cabrito solto
pastaria tranquilo
em seu monte de vênus

                                                     Igor Zanoni

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Intimidade


a intimidade se estabelece
sem perguntas
entre a mão e a chave
do homem que sai e entra
em sua casa
rapidinho se faz entre a boca
e as palavras que o homem
maneja para controlar
sua vida
de modo que os atos são
cada vez mais
subliminares e automáticos
e substituem o homem
por uma tosca imagem
que vai e vem
fala e faz isto e aquilo
sem perguntas
sem questões a si e aos outros
tornando-o um hábito desnecessário
e sombrio

                                           Igor Zanoni

                                                     

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Apocalipse


o bom de ser evangélico
é não ver o apocalipse
como caos e destruição
diabos à solta e caldeirões ferventes
à espera dos pecadores
antes se espera o apocalipse
como a vinda próxima de Cristo
entre as nuvens
para que todo olho o possa ver
levando para si seus escolhidos
que são também os que o escolheram
entre trombetas de arcanjos
os mortos ressuscitando dos túmulos
a reunião dos que se tinham separado
quando menino tinha medo de morrer
minha oração noturna pedia sempre
a volta breve de Cristo
para que eu não precisasse morrer

                                                        Igor Zanoni

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Paz


quem semeia a paz
joga sementes de paz
nos jardins vizinhos
quem anda com paz
anda com ela duas vezes
quem pede paz
recebe a paz
como o melhor presente
a paz é silenciosa
quem tem paz
fala baixo e distintamente
não é preciso orar pela paz
ela um dom natural
recebido quando se está
presente e atento
quem recebe paz
ganha na loteria
quem oferece paz
ganha a mega-sena

                                                  Igor Zanoni

domingo, 16 de dezembro de 2012

Fazer


tudo que fazemos é visto
como vitória
casar sair de férias ter um filho
ascender no emprego
além de mil afazeres na vida diária
assim como se vê como desacontecimentos
separar-se perder um filho ou o emprego
infelicidades em um mundo duro
ao qual temos de responder
como um vitorioso
ou uma pessoa atraente
ou o que nunca jamais errou
ora essa é uma visão tola e perversa
o mundo é perverso e tolo
no limite inacabado
damos sempre com a cara na parede
o que fazer se no mundo
há tantas paredes?

                                              Igor Zanoni

Tempos difíceis


dependendo da época do ano
sente-se assim ou assado
o Natal é perigoso
pessoas que nunca se falaram
durante o ano todo
agora querem ficar juntas
o telefone não para
os e-mails e o face ficam atulhados
o Ano Novo é um período mais cínico
quando nos brindam impostos
férias com as rusgas de sempre
tudo pelos olhos da cara
o melhor é que acabe
a melancolia das férias
voltemos ao trabalho
como disse Freud
o trabalho organiza a vida
precisamos trabalhar na encrenca
onde trabalhamos para ter algum arranjo
com a vida?
pior quando há encrencas na família
ou quando não se decide
num caso de saias
os tempos são difíceis
piores quando há muita burrice

                                                                         Igor Zanoni

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Mentira


percebo que minto
não sei em que extensão
a mentira permite uma vida
falseada
talvez a única pssível
muitos buscam o bem por toda a vida
mas o acham apenas aqui e ali
fizemos na nossa aurora
um pacto com o mal
é difícil buscar o que não somos
embora imperativo


                                                               Igor Zanoni

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Descaminhos


você vai por um caminho
que eu não posso encontrar
nem compreender
às vezes marcamos um encontro
mas você onde andará?
combinamos planos
que eu tento cumprir
sempre sozinho
enquanto você faz não sei o quê
parece que ensaiamos
 uma canção dos Beatles
“I say yes, you say no...”
mas como um homem antigo
nunca ofende uma mulher
nunca pergunto
o que você pensa da vida
 o que está fazendo comigo
por que entre tantos caminhos
há tantos descaminhos?

                                       Igor Zanoni

Final de Ano


as mulheres no centro
quase todas gordas
a maior parte pequenas
e já não tão novas
vêm atulhadas de pacotes
devem ter gasto todo o cartão
das Pernambucanas
levam como podem
 suas incômodas crianças
quando a criança tem fome e sede
compram pastel e refrigerante
que vão todas tomando na rua
porque não podem perder o ônibus
o dia passa e há ainda
tanto por fazer
até as jovens grávidas precisam sair
para se sentirem mal no calor
mas estas vêm com seus namorados
e maridos
porque são jovens e talvez levem
 no ventre
um novo menino Jesus

                                                 Igor Zanoni

Música


você já viu clips
cantores no palco
pessoas cantando concentradas
os braços abertos
o rosto mostrando toda a emoção
que estão sentindo
o corpo se movendo
suave ou sôfrego
em uma capela também há músicos
há música em qualquer igreja evangélica
a cada duas quadras uma da outra
a música distende
ajuda a passar a mensagem
a música é ao mesmo tempo
encantamento e fingimento

                                                    Igor Zanoni 

sábado, 8 de dezembro de 2012

Um homem decente


ele esta vestido decentemente
mas não com seu melhor terno
a cabeça presa com um lenço
para o queixo não cair
pranteado pelos próximos
um pouco indiferente
aos amigos da família
que cumpriam uma visita de praxe
afinal noblesse oblige
era tudo mais ou menos esperado
ele tivera tempo de dizer adeus
logo partiria para os montes e vales
do Santa Cândida
já maior que uma pequena cidade
alguns diziam banalizavam
palavras sobre o destino humano
outros se calavam
o que é bem melhor
pois não fora ele desta para a melhor?

                                                         Igor Zanoni

Salto


ele era uma pessoa grande e expansiva
gostava de vodka e de fumar
crítico e genioso tinha poucos
mas grandes enormes amigos
que o amavam
como não gostava de gastar em roupas
comprava ternos de brechós
especializados em heranças
de defuntos canadenses
em suma era uma figura
um dia decidiu largar a vodka e o cigarro
fez um regime rigoroso
apequenou-se
ficou magro e enrugado
envelheceu uns dez anos
como não gastasse de gastar em roupas
elas ficavam sobrando em seu corpo
agora magro
decidiu se aposentar
separou-se da mulher com quem vivia
há trinta anos
 perdeu sua verve
decidiu se aposentar
pois até os amigos ficaram confusos
moral: algumas mudanças são necessárias
mas não se deve esquecer
que a natureza não realiza saltos

                                            Igor Zanoni

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

A Hora Final


quando eu morrer
só espero que não doa
e que não fique muito assustado
ninguém chore muito
morrer é coisa banal
não é o pior que pode acontecer
não penso no céu
acho que cada um faz o que pode
é o meu limite de otimismo
não Jesus não voltará
da mesma forma como não fizemos
a revolução
espero que o mundo se mantenha
que a humanidade tenha algum juízo
quero morrer em paz
não me incomodem muito

                                                     Igor Zanoni

Augusto dos Anjos


1.       Entre os poucos livros de papai havia dois de poesia: a obra de Bilac completa e o ”Eu e outras poesias”, de Augusto dos Anjos. O primeiro se explica: ainda jovem, conheci Bilac como o “Príncipe dos Poetas Brasileiros, que escreveu o famoso:” Ora, direis, ouvir estrelas...”, tão celebrado  e declamado nos antigos recitais pelas antigas estrelas desses doces encontros ( outro poema favorito delas era o “não sei por onde vou..”, de José Régio). Ademais, Bilac é o patrono do Exército brasileiro, e meu pai era militar. O outro livro talvez se explique por sua encantadora rudeza e estranheza, ficou um bom tempo esquecido, depois foi reabilitado por Ferreira Gullar em edição comentada. Papai era do Corpo de Saúde, e devia gostar de poemas tão pouco líricos como “Eu, filho do carbono e do hidrogênio...”(acho que era isso, meus livros estão tão empilhados na sala que não posso conferir). Para mim, esses livros estranhos foram minha introdução à boa poesia. Depois tive minha fase Guilherme de Almeida, um poeta injustamente esquecido, para afinal no colegial conhecer Fernando Pessoa e outros realmente grandes e contemporâneos, menos no tempo que no seu existencialismo e lirismo tão próximo de nossa luzitanidade. Mais tarde ainda, fiz minhas própria seleção, que logicamente incluía Bandeira, Drummond, Cecília Meirelles e outros do grande modernismo, bem como muitos estrangeiros(Camões, Yeats, Keats, John Donne, Cummings...). Mas a origem de tudo foram os livros de poesia de meu estranho pai.  

                                           Igor Zanoni

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Om do universo


1
Eu sempre ouvi um pequeno zumbido, que achava natural. Talvez fosse um som do corpo funcionando, ou o barulho das coisas em volta se movendo. Mas indo ao otorrino esses dias ela constatou uma perda de audição nos sons mais baixos e perguntou se eu não ouvia um leve zumbido. Perguntei a ela se o mundo era silencioso, e ela confirmou. Minha irmã disse que eu pensei estar a ouvir o OM do universo, e riu muito.

2
Na semana passada eu estava no RU com alguns alunos e a conversa girou em torno das eleições do Centro Acadêmico e do DCE. Mas quando eu entrava de volta no prédio onde ia dar aula, um deles ficou sozinho comigo e perguntou se eu acreditava em Deus. Eu respondi que na minha forma pessoal eu acreditava sim. Ele contou que de um tempo para cá Deus falava com ele. Pediu para ele deixar o cigarro em primeiro lugar, depois com frequência o orientava na vida. Ele achava fantástico, nem sabia como explicar, era maravilhoso.

                                                          Igor Zanoni

domingo, 2 de dezembro de 2012

Baixio


os rios são lentos terrosos
acomodam-se nas margens vegetais
acolhem o ser com poços e funduras
inesperadas
silenciam a noite em volta
com o chiar de rãs e rastros de cobras
nessa lentidão descem até o mar
exuberante de sol e de corpos cuidados
enquanto os rios cruzam os continentes
a seu modo primitivo e caboclo
o mar desconhecido cessa sua ira
no baixio das terras

                                                                    Igor Zanoni

Acontecências


afinal todas as grandes acontecências
de minha vida findaram
espero
eu que lidei com elas como pude
como uma pessoa comum
agora meu carma sai pelo mundo
provocando seus efeitos
mas quanto a isso pouco posso fazer
quando minha vida em breve
também findar
que seja discreta e calmamente
aí afinal as últimas acontecências
findarão ou pelo menos
aos poucos todas se desligarão
de meu nome e minha lembrança

                                                             Igor Zanoni

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

O que escapa das mãos


há o que escapa das mãos
de forma irremediável
faltou-nos paciência
para segurá-las
faltou-nos uma paciência
desumana
uma capacidade de aceitar as coisas
que os deuses
não concederam a suas criaturas
mas que talvez ainda retenham em si
embora há tempo vivam entre os homens
que talvez se tenham
também humanizado
pois bem essas coisas se quebraram
com seu rastro de arrependimento
e nem está em mim
reparar essa dor
dizem que o tempo torna
tudo perdoável
que os inimigos se reconciliam
que algo maior e mais amplo
com o tempo conhecemos
mas agora isto está velado para mim
como um ainda não

                                                               Igor Zanoni

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Piedade



há pessoas que não trazem
nada ao chegar
e ao partir não levam nada
seu rosto esconde iras antigas
mas não as compartilham
não as percebem senão
como os sulcos de sua razão
às vezes tem uma piedade
de novenas e velórios
e essa contrição lhes basta
para acreditarem no modo humano
de estar no mundo
mas não são pessoas indiferentes
ou alheias ao seu estado
são antes pessoas que tem
uma longa corrida a esperar
mas adoecem por não saber
como começa-la

                                                                 Igor Zanoni

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Futebol


Jorge Luís Borges imaginou um campeonato de futebol no qual as partidas eram transmitidas apenas pelo rádio, e os resultados dos jogos manipulados por comentaristas, de modo a manter aceso o interesse por um esporte que vai ficando cada vez mais desinteressante. No Brasil essa estratégia seria desnecessária, pois os resultados já são manipulados, mas com o desconforto de times vencerem campeonatos graças ao dinheiro e status dos patrocinadores, e não darem chance a times menores. Imaginei outra estratégia que poderia dar certo: os clubes brigariam pelo décimo lugar, exatamente o meio da tabela de classificação. É claro que haveria sempre um primeiro e um último lugar, e seria muito difícil time imaginar uma forma de ser campeão. A vantagem é que as torcidas aprenderiam que é preciso levar o esporte menos a sério, com menos desespero e brigas de torcidas. Fica a sugestão.


                                            Igor Zanoni

domingo, 25 de novembro de 2012

Felicidade



paradoxal a felicidade
só se deixa conquistar
com unhas e dentes
e uma implacável vigilância
sobre o coração
muitos pensam que ela se assemelha
à paz mas ela se assemelha
a Shiva São Jorge Ogum
luta conosco nossas lutas
define que lutas são
dela somos fiéis devotos
com suas roupas e suas armas
nenhum inimigo
nos vê e nos alcança

                                                            Igor Zanoni

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Poema Noir

Poema Noir

eu gostaria de um dia
poder escrever um poema
que se parecesse com um filme noir
mas eu não tenho essa inclinação
sou um pouco desligado
sigo no mundo até agora incólume
entre guerras grilagem de terras
suicídio de tribos inteiras de indígenas
matança de crianças por milícias em São Paulo
os bairros abandonados pelo Estado
mas dominados pela droga e os fuzis
a insinuação de que após uma greve histórica
os funcionários não ganharão reajuste
o que há de dramas domésticos
pessoas soltas deprimidas
ou dormindo na rua
sigo entre esses e outros terrores
como uma pessoa que segue
de alguma forma milagrosa no mundo
andando em meus estreitos caminhos
desistindo desde o início de muitos sonhos
entretanto creio otimista
que não sei como tudo isto passará
então não faço um poema noir

                                                  Igor Zanoni

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Pão


o que me espanta
não é que vivamos
pequenas mortes cotidianas
a intransigência das coisas
que cai sobre nós como um cutelo
e que essas mortes tantas vezes
sejam pequenas desistências
transtornando o suposto caminho
no qual seguíamos
mas que algo em nós siga sonhando
lendo romances
olhando os passantes
comendo apenas o que agrada
como se antes de nós houvesse
uma terrestre trajetória de banalidades
que insiste em nos trazer
dos precipícios
oferecendo pão e uma sobrevivência
a vida depois da vida
mesmo com cortes e visíveis suturas

                                                Igor Zanoni

domingo, 18 de novembro de 2012

Imprecisão


palavras como amor
têm um sentido impreciso
podem significar um dever
que nem sempre se pode cumprir
ou um direito que não se pode reclamar
o amor talvez precise dar sem apegar-se
ao que é dado nem ao gesto de dar
ou receber com gratidão
mas não esperar receber outra vez
o amor é um instante trazido do céu
para onde não vamos já que não há céu
mas que inventamos neste instante
imprecisos porque é sempre difícil dar
o que o outro quer ou precisa
e sobretudo não esperar deste
um vínculo estável
porque a vida nos torna cada vez
mais próximos de nossos medos
e também dos nossos supostos refúgios
e portanto afasta o que já está longe
e quase engole o que está perto
parece-nos certo corresponder
ao amor que nos é dado
pois bem façamos isso
mas com o máximo cuidado

                                                                 Igor Zanoni

Chorar


vamos chorar o nosso luto
lamentar a nossa separação
de nós que aqui estamos
ainda por enquanto
sem saber o que deve ser dito
mas dizendo como quem tem pressa
em falar tolamente
em agir com violência
porque a violência nos satisfaz
vamos chorar por mim e por você
nós adoentados e com pouca força
mas forcejando a vida
sem de fato mostrar
com a desejamos


                                                                  Igor Zanoni

sábado, 17 de novembro de 2012

Cansaço


as pessoas cansam
depois de um tempo regulamentar
de conveniências e fair play
elas começam a apresentar
sinais de fadiga
e voltam à sua verdadeira natureza
tornam-se irritadiças
pensam sempre no lucro
de cada transação antes de fazê-la
por menor que seja
esquecem o carinho e os bons modos
em suma começam a cansar
você pode tentar uma terapia
tentar reviver a relação
mas esse é um dado
tão frequente e generalizado
que é melhor aceitar logo a verdade
de que as pessoas cansam

                                                            Igor Zanoni



quinta-feira, 15 de novembro de 2012

O acidente


O rapaz atravessou a estrada fora do semáforo, em frente à faculdade. O carro tentou frear em vão a tempo de não atropelá-lo, mas não pôde. O rapaz caiu estatelado no asfalto quente, imóvel. as pessoas curiosas se aglomeram em torno, mas não fizeram nada, pois satisfizeram sua curiosidade e pronto. Enquanto isso veio correndo pela calçada uma freira com um longo hábito branco, o os cabelos cobertos por um véu branco também longo. A freira veio vindo, veio vindo... Chegaria a tempo de salvar o rapaz? Debruçou-se sobre ele, animou-o (ele felizmente não morrera)e pediu socorro. Como o rapaz não morreu, foi lindo ver o acidente e a freira correndo. Algumas vezes a Igreja causa ótima impressão.

                                                                         Igor Zanoni

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Céu


bom encontrar quem compreende
quem não julga e aceita
quem pondera conosco
quem não precisa tirar nosso peso
das costas
nem o carrega para nós
porque mostra que não há peso
a carregar
bom quem apaga as diferenças
e nos olha com os olhos
da igualdade
com a qual o Céu nos vê

                                                            Igor Zanoni

Emprego


para os que nada ou pouco têm
a saída é esperar que a economia cresça
que o mercado de trabalho se aqueça
e assim possam se candidatar a um emprego
o salário não é bom
os benefícios são modestos
o sofrimento é muito grande
o cansaço nem se fala
horas e dias com sorte toda a vida
sob a batuta exigente
de uma pessoa medíocre
pedindo que você faça sem parar
coisas sem graça
isso sem falar nas doenças crônicas
que se apanham
no desgaste que deixa o empregado
volta e meia encostado
é irônico você tem sorte
de sair do poço do desemprego
se conseguir um emprego!


                                                                Igor Zanoni

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Craques

Craques

eu vi jogadores serem chamados
de craques com respeito
por comentaristas responsáveis
levarem times medíocres
a resultados surpreendentes
e em pouco tempo perderem sua arte
seu domínio do corpo
e da visão do jogo
vi também craques pouco ajudarem
seus times e pararem
em clubes pequenos
apenas porque não agiam em campo
de modo coletivo
a arte se perde e pode ser inútil
todo ato artístico
corre o risco de ser raro

                                                       Igor Zanoni

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Respirar


tudo que nos faz respirar
o alívio de uma situação opressiva
uma alegria que vem do sonho
ao lembrarmos de manhã
do perdido do esquecido
o amor é claro quando possui
uma razoável claridade
certas verdades pessoais
às vezes incomunicáveis
e que funcionam como nosso
santuário
assim como na passagem do dia
uma faixa da Mahavishnu Orchestra


                                                        Igor Zanoni

sábado, 10 de novembro de 2012

Poço


talvez a maior parte de nós
não possa entender
o que se passa conosco
ou sentir esse estado morno
que chamam felicidade
tão fundo a vida enterrou
 em nosso corpo
cacos de uma integridade
para sempre perdida
tentamos todo tempo
manter certa coerência
contra as forças do pesadelo
e da insônia
uma coerência feita da iluminação
do que é confuso e disforme
mas um poço nos devora
e graças a nossa tenacidade
foge como rato
para o escuro para a noite


                                                            Igor Zanoni 

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Poder


não é possível dizer:
eis ele aqui ou ali
vamos tomá-lo
o poder centra-se no executivo
e amanhã no legislativo
outra vez está na imprensa
e com os juízes da mais alta corte
quando há a chamada democracia
o poder se desloca
nunca o vemos com clareza
nunca saberemos ao certo onde está
no capital na sociedade no grande império
nunca faremos a revolução
e a democracia não existe
mas é o que está aí


                                                   Igor Zanoni

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Jovens


eu vi jovens brilhantes e vigorosos
conspurcados por aulas medíocres
nas quais nada lhes dizia respeito
quem é professor ou de algum modo
tem o dever de falar às pessoas
deve não apenas estudar
mas ter uma percepção mais clara
de quem é e com quem está falando
deve adotar uma postura humilde
e esperar as questões do outro
tentar arrumá-las e não com pressa
responde-las de modo padrão
arrogante
não há nada mais promissor
que um jovem ou uma criança
que eles possam fazer suas vidas
sem a perspectiva de um dia
terem de trabalhar em um banco
porque os bancos pagam melhor
ou comprar questões que fogem
à sua vitalidade
porque respondem a outros imperativos
que não a vida
eu vi jovens traídos por quem tinha da vida
uma visão menor em um coração sombrio
nada é mais artificial do que professar
um pensamento prévio e ardiloso
que os jovens digam não
e com José Régio exclamem:
não sei para onde vou
não sei por onde vou
sei que não vou por aqui

                                            Igor Zanoni

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Sonhos


sonho continuamente com as mesmas coisas. sonho que não terminei minha tese e que sou cobrado por isso. sonho também que estou procurando emprego e que meu dinheiro acabou. mas o mais frequente é eu estar em um lugar desconhecido e não saber que ônibus pode me levar para casa. mesmo que os lugares sejam desconhecidos, eles são uma colagem de lugares nos quais vivi, como a rua da casa da infância. em geral esses sonhos são pesadelos na verdade. sei sua origem, sei que a figura paterna é que me cobrou na vida estudo, emprego, casa, e que tudo isso foi obtido com muito medo e mesmo dissabor. mas continuo sonhando, ainda que meu pai tenha morrido há dez anos, que esses problemas na vida de vigília tenham sido solucionados. quais são os medos que se fantasiam nessas memórias? por que essa importância para mim da figura paterna, ambígua e difícil?


                                                                   Igor Zanoni 

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Eco


quando o bairro se aquieta
e silencia à noite
ouço o persistente e leve ruído
não sei se de grilos e rãs distantes
ou o zumbido de meus velhos ouvidos
talvez seja o ruído de fundo
do universo
lembro de na infância parar
para escutar à noite
as rãs incansáveis
talvez a doçura dessa infância
diga agora seu eco

                                                     Igor Zanoni

Fúria do mundo


Renato Russo queria que lhe explicassem
o motivo da fúria do mundo
não são desejos insatisfeitos
não é o modo de produção capitalista
nem mesmo é o tentador
embora nada disso seja bom
mas não somos anjos
o dinheiro é pouco mas algum temos
quem traça itinerários
e depois os confunde
porque queremos fazer isto
e fazemos o contrário?
no teatro de vampiros
como que lembramos a peça
mas esquecemos se fomos nós
que a escrevemos
e se fomos porque tanta fúria
em tão singelo drama?

                                                  Igor Zanoni

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Sobre mamãe


Como mamãe ainda tinha filhas muito pequenas para serem suas companheiras, eu fazia as vezes de seu cúmplice. Fiz isso depois por toda vida. Um dos nossos cuidados era estético. Como as pessoas dissessem que a água do arroz lavado era esbranquiçada porque se polia o arroz com talco, nós fazíamos um caldo grosso com essa água e lavávamos o rosto com ele. Era coerente com um momento no qual se usava tanto o pó de arroz Cashmere Bouquet. Também cuidávamos do que comíamos, porque se dizia que os problemas da pele vinham da alimentação. Uma vez tomamos um copo de azeite de oliva cada um para purificar o ventre, o que nos deixou doentes alguns dias. Papai disse que nós tínhamos provocado uma intoxicação por excesso de proteína da azeitona. Por que não disse antes? Ele era muito calado, acho que não se considerava do nosso lado.


                                                         Igor Zanoni

domingo, 4 de novembro de 2012

O resto da semana


quando eu era criança
ria ou zangava com meus amigos
inventávamos brincadeiras que davam prazer
mas não envolviam sempre risos
e comentários alegres
depois que fiquei mais civilizado
percebi que os amigos quando juntos
tinham quase a obrigação
de falar e de rir
e que verdades importantes
 ficavam fora da conversa
os encontros ficaram mais superficiais
porque agora todos eram mais fortes
ou talvez todos os amigos
hajam se tornado oásis necessários
na secura e calor do mundo
porque temos de ser felizes
a alegria foi feita comércio
e reinventamos o domingo
agora precisamos recomeçar a inventar
o resto da semana
ou esqueceremos a forma real
dos nossos rostos


                                                       Igor Zanoni