quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Daddy


depois que certos artefatos surgem
só se pode tocar a bola pra frente
o que fazer depois da primeira bomba atômica?
mesmo a pasta de dentes não pode ser desinventada
também essa pessoa que meu pai criou com mamãe
só pode tocar seu barco
my heart belongs to daddy...


                                                              Igor Zanoni

terça-feira, 27 de setembro de 2016

O Último Lugar Bom


um grande amigo é estudioso, passou a vida adulta lendo economia, política, história e literatura. de manhã já está acelerado depois de ler como faz toda manhã a Folha de S.Paulo. ontem ele me disse que quer parar de ler o jornal, ou ler apenas uma vez por semana, porque sofre com as notícias. sofre extremamente, por exemplo, com as reportagens e análises sobre a Síria. pensa em talvez deixar de trabalhar e viajar mais, procurar um lugar tranquilo para descansar a cabeça. eu disse que uma pessoa como ele era importante em nossa cidade e em na escola onde trabalhamos, e que só haveria sentido em sua vida se pudesse experimentar e ajudar outros a pensar e agir neste mundo tempestuoso. Viktor Frankl escreveu sobre a necessidade de encontrar sentido em nosso sofrimento, ele mesmo viveu momentos extremos devidos à Segunda Guerra. só o encontro desse sentido pode salvar nossa integridade. por outro lado, em um de seus melhores contos, O Último Lugar Bom, Hemingway fala de nossa nostalgia adolescente por um espaço no mundo onde possamos encontrar nossa alegria e plenitude. meu amigo pensa que ainda existe no mundo um lugar assim?  eu duvido que exista, foi um sonho do escritor. um filósofo italiano escreveu que o neoliberalismo morreu, mas que nós estamos dentro de seu corpo. é bem isso, temos de abrir caminho para fora de sua morte.


                                                                  Igor Zanoni

domingo, 25 de setembro de 2016

Beijo


um beijo
mesmo inquietante
todo me joga em seu cálice
colho em mim a gota
do contentamento
e o beijo se junta a outros beijos
logo são um batalhão
perdido em guerra esquecida
o beijo dado coloca requisitos
para eventuais beijos futuros
logo não há mais beijos
não o mesmo nunca
hoje tão quieto
a lembrança partida
o que proíbo ter de novo lugar
volta como um desejo
que acordo na noite
a noite com suas surpresas férvidas
mas não havia tudo isso passado?
e uma rosa se abre
carnal sem véus
lírica & onírica


                                                             Igor Zanoni

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Batendo papo

 

gosto muito de conversar, não tanto por falar muito mas antes para escutar as pessoas. eu poderia ter usado esse talento e me tornado psicólogo ou pároco, mas estes desejam curar a alma e eu tenho antes um interesse modesto, etnológico. ouvir uma vizinha, por exemplo, em meu condomínio, falar de seus filhos e de sua casa enquanto rega o jardim, deve ser parecido com ouvir um indígena comentar sobre seu cotidiano enquanto pesca em um rio distante. mas ouvir exige atenção para que, com um e outro comentário, se possa conduzir, até certo ponto ao menos, a conversa, para que se possa fazer o interlocutor dar algo precioso de si, sua intimidade e suas emoções banais e corriqueiras. é uma festa gozar dessa intimidade, acho que isto nos torna humanos, com a humanidade que falta na correria do dia. quando garotos temos essa intimidade, que nos permite ficar longo tempo gastando tempo à toa, ou fazendo algo que mais tarde nunca mais faremos, jogar botão ou fumar escondidos. depois o dia se mecaniza, se padroniza de modo banal, o próprio riso se torna um pouco estúpido mesmo que o riso seja algo que nos humaniza e atenua. o dom da conversa resgata essa inocência perdida, mas é preciso dar um certo toque para a conversa, possuir uma certa finura nada ingênua.



                                                                Igor Zanoni

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Rua de casa



no tempo da minha rua de casa, eu sentava no meio fio e esperava alguma novidade. o calor amolecia os consertos de piche feitos no asfalto e era preciso tomar cuidado para não prender neles as havaianas. depois de um bom tempo sozinho ali, passava um sorveteiro, eu não me lembro como mas tinha sempre umas moedas no bolso do shorts para comprar um picolé de chocolate ou de creme holandês. melhor era quando vinha o homem com um latão de bijus, um ponteiro sobre o latão que eu girava sorteando a quantos bijus teria direito. raramente passava um carro, a rua permaneceria quieta não fossem esses incidentes. mas eu tinha alguns vizinhos, que apareciam para um jogo de botão ou um jogo de betes. eu sempre fui muito bom, sem falsa modéstia, no botão, fazia meus jogadores com o celuloide dos relógios, colava embaixo a foto de um craque que eu recortava de revista ou jornal. como naquele tempo as equipes de futebol raramente mudavam o seu plantel, eu conhecia de cor a escalação de todos os times que disputavam o campeonato paulista. também naquele tempo não havia grandes torneios nacionais como hoje, o campeonato paulista e o Rio-São Paulo eram os que eu acompanhava em meu rádio de pilha, às vezes dormindo sobre o rádio nos jogos noturnos. para cada time paulista eu tinha um correspondente em botão. já no betes eu ia bem, porque era alto e corria, mas jamais poderia ir tão bem quanto Natália, uma russa que morava na esquina com seu irmão e seus pais. ela era mais do que alta e veloz, era uma moça impulsiva e ardente, que gritava o jogo todo e que em uma tarde, correndo atrás do irmão dentro de casa, deu um murro na porta de vidro da sala e rasgou o antebraço de um modo absurdo. Natália nunca me olhou de frente, nunca nos falamos, ela apenas passava para cá e para lá sei lá fazendo o que, mas eu a olhava, foi um dos meus primeiros amores, silenciosos e doloridos, alto, louro e russo, ainda hoje me dói quando penso na Rússia.


                                                             Igor Zanoni