quinta-feira, 30 de junho de 2011

Nuvem



Nuvem

1
debruçado no banco do ônibus
sobre um livro que marcava com lápis
um homem com trinta e poucos anos
de aparência pouco usual
sapatos grossos camisa de manga curta
calça social óculos fortes cabelo claro revolto
indiferente ao trajeto lia
indiferente a mim professor desde jovem
talvez ele fosse também professor
mas fantasiei que era um estudioso
dessas coisas que para mim são como nada
teorias da nova acrópole ou da gnose
seria um filósofo?
um homem capaz de examinar-se
de cuidar de si
em um tempo que se precipita
para o degelo total do polo norte
e a severidade dos cortes fiscais e salariais
banem esperanças e eventuais soluções
como energias renováveis inovação
capital humano
meu filósofo talvez pense em amor
 laços duradouros cuidados fraternos
será o homem que nos falta
ou um excesso que o mercado jogará
de bom grado para o ar
no próximo tsunami financeiro?

2
quando eu passar para a outra
quero estar olhando uma nuvem
concentrar-me nela
ver como o céu não a conduz
e sem perceber como
fazer meu seu caminho


                                                       Igor Zanoni

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Sunday

Sunday

Nos mais de quinze anos que estou na Economia da UFPR vi poucos alunos negros ou mulatos no curso. Conto nas mãos, em geral pessoas mais velhas, trabalhadoras em postos médios em empresas da Região metropolitana, de pouca leitura, afáveis, singelos. Professor negro eu nunca vi, apenas um ou outro mais mulato, vindo do Rio para cima, algum preparado professor ou professora do Espírito Santo ou Nordeste. Pois nestes dois últimos semestres tive o prazer de conhecer o Sunday, um rapaz de Benin que veio fazer graduação na escola e assistiu a dois cursos meus. É muito jovem, 21 anos, bonito, forte, bem escuro, de pai árabe, uma família unida por laços de parentesco próprios de sua origem, com vinte irmãos. A mãe dele é uma das cinco esposas de seu pai, um fazendeiro bem sucedido, de família antiga. Sunday é poliglota, fala e dá aulas de francês e inglês, é fluente em árabe, em português e no seu dialeto materno. È um rapaz inteligente, participativo, sereno. Hoje de manhã quando estava me preparando para participar em uma banca de monografia no pátio interno do prédio, vi uns dez ou mais jovens, entre os quais Sunday, em um rebuliço ainda adolescente entrar no prédio. Todos muito escuros, contrastaram logo o ambiente um pouco incolor do nosso andar. Sunday veio me cumprimentar e disse que eram todos amigos de um deles, que defendia naquele momento sua  monografia. Não sei se todos eram alunos da UFPR, provavelmente sim. Por menores que sejam, como carioca, meus pruridos de preconceito não pude deixar de sentir o impacto da alegre invasão colorida. Gostei muito desse gesto deles, que me transtornou um pouquinho. Sabia que Sunday tinha muitos amigos em Curitiba, viaja pelas várias regiões do país e da América Latina e deve ter um futuro em algum lugar da Europa, se depender dele. Os amigos também. Mas ele ama também a África, diz com orgulho: somos quase um bilhão de pessoas. O que esse bilhão pode fazer o futuro dirá, já estamos vendo como se movem no norte do continente que os Estados Unidos querem dominar com novos atores políticos junto com toda a Otan. Hoje me ficou a imagem de vigor e alegria desse punhado de amigos que parecia uma pequena festa particular. Uma festa na Economia? Que idéia singular tiveram! Espero seus amigos em meus próximos cursos.

                                                                        Igor Zanoni

Desapego

Desapego

de tanto perder aprendi o desapego
amar o perdido constrói fantasias
lembranças idas e vividas
sente-se mais vivo com as mãos
em um rio que passa
é bom aprender a não dar
atenção demasiada ao sofrimento
e em vez disso viver
viver  sem remédio
deixar as coisas serem apenas
levanta a justa apreciação
de cada dia

                                                  Igor Zanoni

terça-feira, 28 de junho de 2011

Doutor Josino etc.

Doutor Josino etc.

Em uma das muitas vezes nas quais me tranquei no quarto por muitas semanas, sempre aproveitando para por em dia uma dissertação de mestrado ou ler a biografia toda de Trotsky por Isaac Deutcher, para ter do que falar depois, doutor Josino, o grande, um dos fundadores do movimento psiquiátrico e analítico moderno em Curitiba, idealizador junto com uma selecionada turma de médicos do antigo Hospital Pinel, pelo qual passamos quase todos os meus amigos, os melhores e mais talentosos, como regra sem exceção, disse-me que eu gostaria de ser como Emily Dickinson, que se fechou em casa para escrever poemas e cuidar dos filhos. Como não vi nesta aguda observação nenhuma crítica, comemorei-a experimentando um novo ansiolítico e escolhendo pela lista telefônica uma nova seita religiosa. Doutor Josino se divertia comigo e eu com ele, tratou-me por muito tempo sem cobrar, até que a concorrência e as terapias neo-lacanianas reduzissem seu borderô. É verdade que nessa mudança esteve implícita uma decepção com a Nova República e o governo Lula, já que ele tinha admiração por Carlos Lacerda, o temido e arguto tribuno.   Como sempre fui jacobino e não tinha dinheiro, ficamos sem nos ver mais, mas sempre tenho notícias por amigos, aos quais repete o bordão: “o que falta no Brasil é um bom partido de direita”. Eu concordo que falta qualquer partido, concordo que nos faltam tribunos, que o governo não pode muito, mas, além disso, na ditadura era jovem para prestar atenção em política, e de qualquer modo, prefiro me definir como um homem acima dos partidos. O único político que me emocionou foi Teotônio Vilela e o primeiro de que ouvi falar foi Tenório Cavalcanti. Acabei me decepcionando com essas conversas e tratei de cuidar sozinho de mim mesmo. Quando se está só pode-se ser um poço de contradições sem problemas. Parece que foi o próprio Freud que não viu nisso grande problema e se foi mesmo estou bem respaldado. De todo modo ainda tenho certa gratidão pelo doutor Josino, embora tenha visto nele certo complexo de pai. É difícil falar dos pais, mas aceitei o fato pela companhia inteligente, por poder dar vasão à minha melancolia com um homem preparado e ter argumentos para faltar ao trabalho. Foi divertido, mas foi também foda.

                                                      Igor Zanoni

Sentimentos

Sentimentos

1
Herr Professor Claus Magnus disse
que a visita ao túmulo de Marx
foi sua maior emoção em Londres
e lamentou que Engels tivesse dado ordens
para que suas cinzas fossem jogadas
no Canal da Mancha
“eu gostaria de ter podido ficar frente a Engels
em silêncio pensativo
como fiquei frente ao túmulo de Marx”
foi estranha essa confissão para mim
de um homem tão severo
mas me alegrou ter sido considerado
um confidente digno

2
as pessoas há muito tempo sozinhas
tornam-se depois más companhias
porque desaprender a ceder e a conceder

3
quem tem muitos princípios pode suspeitar
muitos finais inesperados
e se tranca em sua casca de nóz

4
ao contrário do que muitos podem pensar
é melhor chorar por nós que pelos outros
se mantivermos uma cálida esperança
e de tudo que passou saudades colhidas
para um ramalhete ao lado da cama

5
amo sonhar porque é sempre um exercício de si
de descoberta das relações como são
nesse momento da vida
como relembramos pessoas em sua aura jovem
que amamos tanto!
como nos desafiam ainda e nos impõem
os deveres da vida!

6
pobres de nós quando as saudades
se mesclam com remorsos!
melhor ter morrido primeiro
não ter sobrevivido ao amor

                                                       Igor Zanoni

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Até amanhã

Até amanhã

1
sempre se crê que os jovens
querem assaltar os céus
e desenvolver sua subjetividade
mas hoje a maior parte quando pode
contenta-se com uma moto e um tênis caro
tudo é frágil diante disto
não importam escolas técnicas
nem bolsas escolares
Cazuza cantava:
 “ideologia...eu quero uma pra viver!”
como os jovens criarão sua ideologia?
esta questão é anacrônica?

2
eu sempre te digo: até amanhã!
até o dia em que já não estarei aqui
então não direi
bastem esses anos felizes
para você e para mim

                                                  Igor Zanoni

domingo, 26 de junho de 2011

Separados pela vida


Separados pela vida


surpreendi-me com meus pais separados
nós já éramos crescidos
e por um bom tempo papai sentiu-se só
em casa e acho que na vida
pois também tinha poucos amigos
comprou uma mesa em um restaurante caro
numa rodovia que circulava Campinas
onde bebia uma dose de uísque
gostava também de frequentar um rodízio árabe
esperando com paciência o garçon servir
tripa de carneiro recheada
também ia muito a cinema em um shopping
ver filmes de James Bond
mamãe que tinha muito menos dinheiro
mudou-se para uma vila no Rio
começou a dar aulas em um jardim de infância
e nas sextas frequentava um baile no Meyer
voltando de madrugada
fez um namoro com um homem jovem
que só a morte interrompeu
e ajudou minhas irmãs quando também se separaram
pensando nos dois acho que
como Maria que era por batismo e opção
ficou com a melhor parte
mamãe só viveu depois de descasada
e meu pai como em geral acontece
ficou um pouco perdido na vida

                                                              Igor Zanoni

Direita

Direita

a direita é sempre coerente
é homofóbica detesta a erva
julga que o problema da pessoas
é detestarem trabalhar
que políticos são sempre corruptos
odeia Hugo Chávez e Lula
enfática diz: o que falta no Brasil
 é um bom partido de direita
e um grande intelectual
é Domenico di Masi
é combativa detesta árabes ou negros
anarquista, o maior problema nacional
residiria no volume de impostos  
para ela a pobreza é um mito
trocar chumbo a lei da vida
e seu herói é Charles Bronson

                                                     Igor Zanoni

Comer pastel

Comer pastel

ir à feira com mamãe tinha o momento especial
de dar um tempo e descansar
comendo pastel em uma barraquinha com bancos
como o dinheiro era curto
descobri um modo de escolher bem o que ia comer
primeiro: jamais comia pastel de carne
a carne na época era cara e vinha pouco recheio
só uns grãozinhos de carne moída meio secos
segundo: não comer pastel de palmito
o recheio era uma massa sem graça e pastosa
de palmito tomate cebola e tudo que eu não gostava
terceiro: comer o pastel de queijo
mas escolher o que saía na hora da frigideira
cortando uma pontinha para o ar quente sair
antes de dar a primeira mordida
quarto: ver onde estava a maior parte do queijo derretido
comer a massa em volta do queijo
e então ter o prazer pleno de mastiga-lo
ainda quentinho e meio mole
as crianças aprendem rápido por que têm pouco tempo
para descobrir as alegrias da vida de criança
a sorte é que são espertas
e nunca se enganam na frente de uma japonesa
quando se trata de comer um petisco na feira
comer é coisa séria para uma criança
é raro serem enganadas

                                                       Igor Zanoni

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Grandes Ilusões

Grandes Ilusões


1
entre as esperanças do século XIX
estiveram o mesmerismo
abrindo a comunicação
com os sublimes espíritos
que nos desvendariam o cosmo
e o socialismo utópico de Fourier
que devolveria ao trabalho
a sua dignidade
quais foram as desilusões do século XX
experimentadas pelos homens de bem?
quais foram as suas desilusões?


2
o trabalho não pode mais conduzir bem
a psique como pensou Freud
o trabalho foi uma ilusão
entre as grandes ilusões do século XX
corroendo o caráter como indicou Sennett
ou alienando o homem
como já havia indicado Marx


3
após uma aula sobre Marx
e sua crítica à economia política
um de meus melhores alunos perguntou
se o marxismo tinha ainda alguma importância
ou era um monumento histórico
ás grandes ilusões humanas

                                               Igor Zanoni

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Robert L. Stevenson

Robert L. Stevenson

o brigue se despedaçando sobre o recife
o grande barulho das velas
e o canto do vento
e o borrifo das águas do mar
e a sensação de perigo
minha cabeça ficou perturbada
e eu não conseguia entender muito o que via
 se consegui me salvar foi mais pela graça de Deus
que por minha prudência

                                                    Igor Zanoni

terça-feira, 21 de junho de 2011

Equilíbrio

Equilíbrio

1
a providência deu a cada um
o dom do equilíbrio
na vida comum
como deu aos vagalumes
o dom de brilhar
quando escurece
há pessoas que lançam longe
sua luz em tempo sombrio
como há os que sequer brilham
quando o tempo é inconstante
eu mesmo me considero
um pequeno vagalume
basta para mim
é na verdade muito

2
que chip têm as baratas
para sobreviver desde o jurássico
e rainhas dos bueiros
ter saúde em meio ao lixo
que dom sinistro nos prega susto
quando uma barata
entra voando no quarto
e se esconde no canto escuro
das estantes dos armários
no interior da tevê de plasma
e pode viver de plástico
de pen drives de imagens
do nosso futuro incerto

                                                      

                                                                      Igor Zanoni

domingo, 19 de junho de 2011

Desejo

Desejo

Deus me livre de pretender
entender os outros
isso é tarefa para um profissional
aprendi aos poucos a ficar calado
e agora aprendo a aperfeiçoar
esta arte
fazer-me de desentendido
quando não entendo
conter-me quando entendo
respirar enquanto há ar
as pessoas sofrem por amor
há tantos amores que ficam
como flores à beira da estrada
sem valor sem serventia
quanta paciência as pessoas pedem
como querem impor as suas vontades
e quando perdem o jogo
como são ainda maltratadas
depois de se maltratarem tanto
são o chão que ninguém vê
flores pisadas
e há quem queira amar o próximo
o próximo se torna o mais distante
quando é difícil se amar
difícil manter a dignidade
 impor aos outros o desejo
que sequer se conhece
qual é o seu desejo?
pois é disso que se trata

                                                             Igor Zanoni

Liberdade liberdade

Liberdade liberdade

nossas marchas pela liberdade
também pela democracia
tingem as ruas de múltiplas cores
e pedem pouco
não a socialização dos meios de produção
não o fim do domínio do capital financeiro global
não o fim do imperialismo internacional
não tem o antigo vermelho
que a maioria desconhece
poucos leram sequer o belo texto
do Manifesto Comunista
pedem direitos mínimos
o livre dispor do próprio corpo
esse último limite
onde finda e começa o mundo em redor
ninguém quer filho maconheiro
preferem arriscar em que o filho
não se drogue de outros modos
preferem se benzer
e por o filho em aulas de inglês
para ganhar pontos em uma entrevista
se fizer uma entrevista
para se sujeitar a um emprego em um banco
ou em uma agência de modelo
ninguém é a favor da pornografia
apenas admite a pornografia
em alto estilo e bom som
do diretor do FMI ou outro diretor qualquer
é uma benesse do seu ofício
ele ganha para isso
sejamos proletários não do capital
mas da nossa miséria emocional
riamos dos doidos
no aconchego de um lar
eu conheço esses lares que começam
com a disciplina e medram no medo
façamos a internacional dos encalacrados
sejamos malcriados
isso meu amigo não é o fim

                                                               Igor Zanoni

sábado, 18 de junho de 2011

At work

At work

1
nos seus gabinetes os professores
se debruçam por uma vida
tentando encontrar a lógica inflexível
que permeia o mundo do trabalho
do dinheiro das instituições
como hoje é moda se dizer
se você entrar neste pátio interno
onde inutilmente o sol
convida a uma volta no Jardim Botânico
que fica bem em frente ao campus
não encontrará senão a alegria
dos aprendizes de feiticeiro do PET
nos severos gabinetes dos professores
todavia reina sempre a ordem
desse futuro ideal que impele o espírito:
“mathematics as usual”!

2
essas pessoas querem o que?
depois dos trinta apenas conforto
uma vida quase devassa
de contatos influências
prazeres mundanos 
um posto um cargo
bom conhecedor da corte
dos caminhos do pote de ouro
que tolamente se julgava ao fim
de um arco íris que não havia
nunca houve
e esse sorriso maleável na boca
ávida e sagaz!

3
os marxistas gostam de se estapear
julgando que seu mestre era assim
grosseiramente lúcido
não falível e humano
capaz de suportar infindas amarguras
por objetivos plebeus
mas nunca toscos e pretensiosos

                                                     Igor Zanoni

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Horas de leitura 2

Horas de Leitura 2

em Hawthorne encontra-se a exuberância
na pletora de metáforas e analogias
como a do menino que comia guloso
biscoitos de gengibre
e lembrava o tempo que tudo devora
permanecendo sempre jovem
os valores aristocráticos impregnados
na Casa das Sete Torres
 esbatem-se contra o vigor ianque
da simplicidade avisada e do trabalho
numa América que é a mesma de Whitman
orgulhosa plebeia de utopias
que se encontram e prometem
amores sem fim em uma pátria infinita

                                                Igor Zanoni

Horas de leitura

Horas de leitura

em Dostoiévski os idealistas
banhados em uma luz cristã
mas bem distante da ortodoxia
frágeis muitas vezes doentes
sempre pobres
em uma narrativa que entremeia
discussões sobre socialismo
marxismo positivismo
antecipando A Montanha Mágica
o ritmo frenético dos personagens
que mal deixam pausa na vida
para a vida comum
ou inventam para si uma vida
de amores viris mas impossíveis
nos quais realmente amam
a luz clara em uma cidade
que a neve fixa em seu povo
de sapatos rudes
sem meia e casacos rotos
a compaixão por esse povo
mas quase nunca a sua idealização
embora às vezes sim
em uma aura inexcedível
plebeia urbana cálida
apinhado em cortiços onde nas escadas
se sente o cheiro do peixe frigindo 
e o chá esse luxo indispensável


                                                                                                       Igor Zanoni               

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Ceará

Ceará

enquanto dezenas ou mais de países
assistem a manifestações pela liberdade
do uso do corpo
ou pela liberação da erva
pelo fim dos tiranos amigos
 dos plutocratas ocidentais
e que não têm mais nada a fazer ou dizer
a todos esses manifestantes
nem aos que sofrem calados
sem manifestar nada exceto sua dor
sua alma humilhada e ofendida
o mundo submerge na pior crise econômica
desde o crash de 1929
ouvindo a solução de trabalhar mais e poupar
dos organismos internacionais
os policiais parrudos atiram para valer
balas de borracha que podem cegar
e gás lacrimogênio que faz seu corpo
queimar por dentro
em outros lugares a guerra é aberta
e mal se sabe quem luta com quem
ou quais as motivações dos amigos
em ajudar na briga
pelo direito de ser feliz e usar como quiser
o próprio corpo
por exemplo comendo e bebendo
e dormindo em uma cama limpa
com seu companheiro ou filho
usar como quiser o corpo!
nem os policiais fazem isso à vontade
só a nobreza sob o czarismo
e outros exemplos conspícuos
de incompetência depravação
e uso privado e impróprio
do que não é seu
se eu pudesse fazer o que quisesse
com meu corpo
teria de parar uns dias e elaborar
um desejo refinado
como o de passar as próximas férias
com amigos no Ceará

                                         Igor Zanoni

Tango

Tango

eu que cultivo amigos
que busco as origens
de sensações sentimentos
o desenho do amor
da vontade disso ou daquilo
a manhã da vida como o prenúncio
de um dia todo por esclarecer
que falo lembro escrevo
envio notícias e peço
surpreso se alguém crucial
inesperado surge
figura cujo calor recebo
como a notícia de que há
eternidade no cosmo
alegrias que não passam
cumplicidades que se fazem
outra vez
que acho ruim esquecer
e tanto tenho esquecido
e há tanto que é impossível
lembrar senão às vezes
e protegido por alguém
que oferece o essencial amparo
que ando pelas ruas memorioso
pisando em flores que não quis pisar
mas pisei
erguendo monumentos a mim
o homem que existe
por vocês e pouco para mim
um dia me despeço
melhor: despeço-me desde já
que seguirei sem poder
dar conta de tantos sentimentos
que o mundo obriga
ou que pretencioso obrigo o mundo
a satisfazer
sempre com desencanto
e desalento

                                                    Igor Zanoni

domingo, 12 de junho de 2011

Renascer

Renascer

o que não dizemos é muito maior
do que o dito
em um tormento
pode-se jogar sempre a vida
e infindas explicações?
somos essas pessoas cotidianas
oscilantes em sua vaga aparição
mas queremos fincar pé em algo
a vida é insegura e não há
tanto o que escolher
e o amor existe mesmo imperfeito
em nós nos sentimos amplos
e densos posto que sós
mas tudo em volta envelhece
a casa precisa ser pintada
as crianças mal notam o que notamos
então voltamos a face para o nascente
e a impermanência passa a ser
essa forma corajosa de renascer


                                             Igor Zanoni

Readers Digest


Readers Digest

parecia o início de um longo idílio
o casamento de Paul e Mary
mas na verdade apenas começava
o maior desafio que alguém pode enfrentar:
conviver o tempo todo com um ser humano
uma história de conflitos
coragem e superação

                                                         Igor Zanoni

sábado, 11 de junho de 2011

Companhia


Companhia

pobre do homem a quem Deus
não concedeu uma companhia!
jamais trocará o bocal da lâmpada quebrado
aos domingos comerá frango com maionese
da padaria
não terá sogros cunhados
no final do mês rodará pela cidade
gastando seu salário com reles diversões
nunca terá incentivo para progredir
trocar de carro
há de morar em uma mofada espelunca
e mesmo assim não chegará a poeta
ou jornalista
breve o comerá o escarro da tuberculose
e em um hospital do SUS há de morrer
paradoxal
de causas desconhecidas

                                                  Igor Zanoni