quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Fugitivo


fugitivos os poemas
arrepiam caminhos
o lírico se transmuta
no amargo ou no ansioso
tento contê-los mas pergunto
se melhor não fora
deixar de vê-los
fugidios os poemas
se esparramam na planície
não descem ao mar
nem deitam como as plantas
raízes
eu mesmo não leio poemas
não gosto muito de poetas
sigo atrás dos meus versos
apenas quando encontro
um caderno por acaso guardado
sinto-me então um presunçoso
os poemas vão sempre à frente
feliz de mim se me levam junto
nesses arrepios fugitivos

                                                       Igor Zanoni

Remédios


Hoje as drogarias são um ramo concentrado e em expansão, mas em minha infância, até os onze anos, precisei de poucos medicamentos, que eu mesmo administrava. Talvez porque eu vivesse em um ambiente saudável em casa, em uma cidade serena na entrada do Pantanal. O risco que correria era a desidratação se fosse mais pobre, as verminoses (a giardíase quase matou papai), contras as quais havia vermífugos que se tomava regularmente, ou uma cobra, mas elas preferiam o mato espesso. Quando tinha insolação ou minhas costumeiras dores de garganta, ministrava um envelope de Pyramidon a mim mesmo (depois o remédio foi proibido, talvez por conter alguma substância caída em desgraça). Da mesma forma, curava dores de barriga com dez gotas, que contava judiciosamente, do refrescante Elixir Paregórico, que também foi retirado da praça por ser derivado do ópio. Uma vez ou outra a garganta não sarava, e papai me dada umas pastilhas, de colocar sob a língua de sulfa, horríveis. Acho que foi só.Na adolescência passei a tomar Efortil porque minha pressão se tornou muito baixa, e passava muito tempo na cama com dores de crescimento. Tudo isso era recomendado por meu pai. Ele achava que em casa era ele que sabia da saúde de todos. Tinha um modo psicológico de encarar a questão, por exemplo, impedindo que um dos meus irmãos, que tinha asma, tomasse anti-histamínicos por mais tempo. Isso a seu ver era uma fraqueza de caráter, pois o anti-histamínico era um sedativo e meu irmão precisava ser mais forte face à vida. Depois as coisas pioraram e os remédios venceram meu pai. A indústria farmacêutica era poderosa demais para um homem das antigas como ele.

                                                      Igor Zanoni

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Ronald


não chame por engano
o Ronald de Robert
muito menos se não se derem bem
muita gente já me chamou de Vítor
e eu não me chamo é óbvio Vitor
o Ronald não é Robert
nem Anderson nem Emerson
reparem a alegria que tem
em ser sobretudo o Ronald

                                               Igor Zanoni

Relógio de areia


é terrível marcar o tempo
em um relógio de areia
é preciso não se distrair
não fazer nada mais
que olhar a areia se escoar
e quando for o momento
de virar o relógio
momento que o próprio relógio
indicará
saberemos que se passou
tantos minutos
em vão
pura espera
tola vazia
sem esperança

                                                              Igor Zanoni

                                   

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Chance


acho que não ia dar certo
não entenderíamos nossas conversas
seria difícil ir aonde você quer
ou discutir as coisas que gosto
mesmo se gostássemos os dois de alguma coisa
nossos motivos seriam diferentes
você é religiosa e eu me sinto ateu
tenho vinte anos de psicanálise
e você é a festa em pessoa
eu adoro uma pasta e você é tão magra
que teria de te dar de colher
uma banana com aveia
você ama correr na praia
eu tenho medo da tanta gente
ao mesmo tempo
e sempre que corro tropeço
por que eu insisto com você?
nunca vou saber
às vezes o que pinta é esquisito
mas esquisitamente é o que pinta


                                                  Igor Zanoni

Dívida


a uma perda corresponde
por paradoxal que pareça
uma dívida que não posso pagar
mas me cobro com insistência
como se a culpa da perda
fosse somente minha
quando tantas vezes
 nem minha de jeito nenhum é
sobra um ramalhete de impossibilidades
flores murchas da minha vida
cujo sentido me negam
ou renego
de uma rosa velha faço
enfeite na lapela
e como um velho antiquado
ando por uma cidade
na qual fui mal sei como jogado

                                                                   Igor Zanoni

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Perda

Perda

há perdas que se repetem
como matriz de outras perdas
nem sempre ou quase nunca
compreensíveis
todavia dolorosas que fazer?
gostaria que um amigo explicasse
por quê não me vê mais
ou que um amor dissesse
por quê seus minutos foram tão breves
sinto-me sem justiça
em um mundo em que esta falta
é sempre tão presente
mas a perda é o maior e menos claro
sentimento que temos
 só se pode vê-lo com resignação  
                                                                                                   


                                                                                                                                          Igor Zanoni

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Mulher de soldado

Mulher de soldado

Nossa casa em Cáceres, no início dos anos sessenta, ficava em uma rua estreita, pela qual se passava a pé ou bicicleta, pois a cidade só tinha um carro que nunca vi circulando. As casas ali tinham uma pequena calçada, onde á noite se punham cadeiras para conversar e espantar o calor. Havia um jardim interior, perto do poço, face á cozinha e à copa abertas para ele, também para diminuir o calor úmido do Pantanal. Próximo acabava a rua, em uma estrada sem beiradas na qual cresciam gigantescos tamarineiros, mangueiras de todos os tipos e palmeiras de bocaiuva. Ali ficava o Hospital São Luís, onde meu pai, que servia no velho II Batalhão de Fronteira, atendia mordidos de cobra. Em frente à nossa casa morava um soldado, que servia com papai, com sua mulher amiga de mamãe e que tinha em seus dias vazios a companhia de um quati preso por uma comprida corrente em uma árvore no tal jardim interior das casas dali como já falei. Essa moça um dia me surpreendeu com a notícia de que sua casa era tão boa que tinha bidet. Eu ignorava o que era isso, e mamãe não quis me explicar. Ficou o dito pelo não dito, mas nem tanto. O final da história foi a descoberta pela moça de que o soldado a traía com as que frequentavam o quartel ou por ali perto esperavam os soldados. Sua vingança foi horrível. Ateou fogo no vestido e no corpo, embebidos em querosene. Nunca mais soube dela, nem do soldado, e como sempre ninguém me explicou nada. As crianças precisam ser muito espertas, pois caso contrário não entenderiam da missa a metade. Minha sagacidade percebeu que mulher de soldado nem sempre é feliz, mesmo tendo uma bela casa com bidet e quati.


                                                                         Igor Zanoni

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Raul Seixas


O Nordeste produz periodicamente Antônio Conselheiros, isto é, profetas que de uma secreta e alta investidura fazem a crítica do momento presente e anunciam novos tempos. A música popular brasileira não ficaria sem eles, como Caetano Veloso, Zé Ramalho e Tom Zé. Poucos, porém, com a coerência de uma vida dedicada a um rock messiânico como Raul Seixas. Suas ideias são as de sua época, e se encontram também em John Lennon, George Harrison, Mahavishnu Orchestra e assim por diante. Em particular, destaco a ideia de que a interação humana e com a natureza envolve um “segredo” não acessível à ideologia da sociedade industrial (faço eco a Marcuse, um pouco sério e um pouco jocoso), mas que pode ser compreendido através da prática da introspecção mística e transformado por comportamentos concretos alternativos. Por isso anuncia a liberdade sexual, por exemplo, e insiste na urgência de sua mensagem, como um evangelista, avisando a partida imediata do trem das sete horas que vai partir para a terra imaginária do “sertão”. Ou fala dos “sujeitos normais” que duramente lutam para pertencer a uma sociedade que requer deles sacrifícios repetindo o status quo e a falta de liberdade. Para estes ele canta sua “gita”, ecoando a epopeia indiana base da ioga clássica, demarcando que sua mística também não é a dessa sociedade individualista e competitiva. Sua ideia principal talvez seja a de que se deve construir um paraíso na terra, no qual as pessoas possam livremente seguir sua vontade sem romper a tessitura social. Disse isto e um pouco mais em um rock nacional autêntico, não copiado de modinhas românticas do início dos Beatles e longe da ingenuidade e fútil aparência de Roberto Carlos, dissidente falso de um sistema industrial recriado pela ditadura militar. Caiu amplamente no gosto popular, até hoje suas músicas sabem de cor os violeiros. Por uma questão de classe, a classe média alta jamais gostou de Raul. Ele pertence a raízes populares demais para isso. Ele queria transformar a si e ao mundo. Em uma bela canção, se diz o carpinteiro do universo e de si mesmo, síntese de uma obra dedicada á coerência e -por que não?- à esperança e à tragédia pessoal.

                                              Igor Zanoni

domingo, 20 de janeiro de 2013

Vasto mundo


uma companhia sensata
uma amizade serena
é tudo que quero
um telefonema sobre uma dúvida
até uma troca de receita
é uma alegria que busco
não estou falando de grandiosidades
como encontrar a Deus
buscar o próprio eu
ou outros êxtases e sonhos
quero uma pessoa que passe para um café
e converse sobre o que estamos fazendo
é mais do que em geral se tem
é preciso ter bondade
para alcançar esse nível do mundo
vasto mundo sem coração

                                                              Igor Zanoni

sábado, 19 de janeiro de 2013

O Fio da Navalha


Andar sobre o fio da navalha, isto é, sem pender para um lado ou outro, sem desequilibrar-se por não exercer equidistância e julgar as pessoas pelo próprio apego. Assim evitar o sofrimento, o próprio e o da comunidade humana, agindo sem agir, isto é, com uma sabedoria sem objetivos que não evitar o sofrimento. No livro “O Fio da Navalha”, baseado em acontecimentos e pessoas com as quais conviveu entre o final dos anos vinte e início dos trinta, Sommerset Maughan trata de modo pioneiro na literatura européia esta forma de agir encontrada por um homem que sofre vários conflitos amorosos e a tragédia pessoal de amigos, ao dirigir-se para a India e lá encontrar orientação e a prática da meditação graças a um velho rishi. Quando li o livro pela primeira vez, não entendi muito, talvez porque Maughan parece reduzir a sabedoria a saber praticar hipnose ou outras superficialidades. Além disso, o livro é muito colorido pela vida intensa da elite americana e parisiense, e a idéia central ficou para mim meio perdida. Mas vendo o filme, muito antigo, com Tyrone Power no papel principal, o enxugamento que o livro sofreu mostrou-me bem do que se tratava. O filme é muito melhor que essas bobagens como “O Pequeno Buda”e outros, porque proveio de um grande autor.

                                                                      Igor Zanoni

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Meia sola


você pôs um dia meia sola no sapato?
meia sola ou sola inteira?
trocou o salto por salto Amazonas?
usou bonitas de elástico que o sapateiro fazia?
sua mãe usou blusas com os botões nas costas
pedindo que você os abotoasse?
chegou a usar calça boca de sino
com sapato Luis XV?
mas calça calhambeque usou, não?
mesmo detestando Roberto Carlos
quantas músicas dele você decorou?
e as modinhas românticas do Chico Buarque?
quantos ímpetos tropicalistas
te levaram a festas malucas?
você se alfabetizou com a cartilha de Tomás Galhardo
ou com a Caminho Suave?
você andava de madrugada na rua sem ser abordado
por polícia ou bandido?
foi de uma época em que os crimes eram passionais
em “legítima defesa da honra”
como diziam os comovidos jornais da cidsde?
você votou em Jânio ou Lott?
depois deu “ouro para o bem do Brasil”?
viu Rivelino jogar junto de Tostão
Jairzinho Pelé e Gérson?
eu poderia fazer mais perguntas
mas só faço mais uma:
essa comédia toda valeu a pena?

                                                Igor Zanoni

Músculo

Músculo

1
Jesus disse: “a boca fala
do que o coração está cheio”
mas é precisamente disso
que a boca quase não pode falar
ou fala mas não percebe

2
é diferente buscar enunciar
o que somos e vivermos
no nosso corpo
quando o percebemos íntimo
e o identificamos conosco
de certo modo foi o que disse Paulo
no aforisma
“ Já não sou eu quem vive
mas Cristo vive em mim”
pois Cristo era seu pão

3
a diferença entre dizer e viver
foi percebida com clareza
por Kierkegaard quando fala
em viver o amor cristão
mais tarde Nietzsche dirá:
não posso falar o que está
fundo em meu músculo

                                                    Igor Zanoni

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Chuva


o odor das alturas
que a chuva traz para a terra
o cheiro do mato encharcado
e o silêncio dos cães assustados
o célere relâmpago
e a tardia trovoada
os pingos batendo nas poças
levantando minúsculos chafarizes
lembro de muitas tardes assim
posto à janela
inventando nomes para cada coisa
que acompanhava a chuva
os bois pacientes passavam
em frente à casa
lançando sem pudor
suas bostas circulares
nas quais brincava depois
mas preferia as dos cavalos
com as quais os meninos
brincavam de guerrinha
seu cheiro limpo
de mato compacto
mas há muito mudou o destino
que nos enlaçava
e quase ninguém recordará comigo
as lonjuras que carrego

                                                             Igor Zanoni

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Repetições


há sonhos que se repetem
não se consegue ir para a casa
em que estamos
não alcançamos algo precioso
mesmo se alcançamos
o medo nasce muito cedo
e fica estampado
em cada dificuldade
a porta em que batemos hoje
é aquela em que batemos ontem
há sempre o presente
passado futuro
podemos fazer qualquer coisa
seremos sempre os mesmos
nascemos quando?
a cada instante
em terrores noturnos
e no amor que está sempre pronto
para a hesitação e a falha

                                                       Igor Zanoni

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Manuel de Barros revisitado


é difícil hoje sustentar ideias e valores
baseados na nação no progresso
ou na fé
tudo parece esfumaçar-se
em um mundo dividido e policiado
no qual o poder e o dinheiro
chegaram ao nível de debochar
dos que não participam
do banquete dos privilegiados
não posso mais refugiar-me
em utopias como uma fé sem dogmas
e mitologias
que uniria as pessoa em torno
de alguns valores e práticas eficazes
a revolução não é mais possível
o super-homem voa sobre nossas cabeças
como um bombardeiro
e cá em baixo o que se faz de interessante
e que é muito pouco
a mídia substitui por BBB e partidas de futebol
por borrar a honra dos honrados
e dar aos imbecis a sensação
de que eles são a reserva moral
de um mundo sem escrúpulos
não tenho mais partido
não me identifico com qualquer igreja
é preciso reler o Livro sobre o Nada
de Manuel de Barros
amar o insignificante é o começo
do andar a pé
sentindo no corpo
a textura do mundo que se julga
sem significação
e que sustenta sua vida
o molhado na relva
o cocô dos bichos
o cu das formigas

                                                            Para Bruno
                                                           Igor Zanoni


domingo, 13 de janeiro de 2013

Atenção


crescem na cidade a observância
e a atenção
no domingo os shoppings reforçam
sua segurança
porque gente pobre vem tomar sorvete
a feira de artesanato se divide
entre as forças da lei
e as moças que fazem fila
 para comprar pastel
elas que são tão exigentes
ao comprar um agasalho tipo jogging
quando os skatistas da cidade
a maioria garotos entre catorze e dezoito
fizeram uma reunião
pacífica e feliz na praça 29 de março
as forças de terras foram secundadas
por um enorme helicóptero
com arams apontadas para baixo
nesta cidade atenta
três é demais
na Igreja Presbiteriana Independente
o mesmo apelo do pastor:
quem quer hoje agora
aceitar Jesus?
bom eu aceito mas e a partir daí?
tenho de amar que semelhantes
beber e comer o quê
dar quanto em dízimo
distinguir-me dos presbiterianos
 não independentes?
porque todo pastor entoa
seu sermão do mesmo jeito?
diminui a voz depois vai crescendo
depois fogos explosões aleluias
não cantam os sertanejos do mesmo modo?
cresce a observância
ao controle externo
se soma o controle interno
o medo reina
todos agem como se o fim
estivesse próximo
no domingo de Curitiba


                                               Igor Zanoni

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Feiras de artesanato


Feiras de artesanato

No final do anos sessenta ou início dos setenta surgiram também no Brasil as famosas feiras de artesanato  ou feiras hippies, reunindo quem não queria viver dentro dos valores e empregos dominantes na sociedade e levar uma vida diferente, com maior liberdade pessoal, experimentos em drogas alucinógenas com um forte teor religioso de outras culturas como a dos índios do deserto de Sonora dos quais falava Casteñeda em seus livros ou Timothy Leary, o psiquiatra que fazia experimentos com mescalina e LSD. O mundo era mundo mais liberal e parecia ser possível uma sociedade alternativa, cantada por John Lennon e no Brasil por Raul Seixas. Pois bem. As feiras hippies aconteciam nos domingos, ocupavam praça como A praça de República em São Paulo ou a praça Carlos Gomes em Campinas, lugares onde eu vivia na época, entre o segundo grau e o início da universidade. O artesanato era muito criado, não usando peças pré fabricadas, exigindo grande talento dos seus artesãos. Eram tão boas que eu ia mesmo com papai, um sisudo major do Exército que adorava o clima da praça Carlos Gomes   e os quitutes vegans que podia comer ali. Aos poucos as praças foram mudando. foram institucionalizada, um lugar na praça dependia do clientelismo dos vereadores, e o artesanato original foi substituído quase completamente por peças compradas na rua Direita e revendidas. as donas de casa de classe média aumentavam a renda da casa com toalhas pintadas e camisetas com imagens convencionais da Virgem Maria e de Jesus, sem nenhuma invenção no seu corte ou modificações na sua confecção. as camisetas ficaram brancas, compradas na Hering e estampadas à máquina, só. Os hippies se acabaram, e o movimento quase acabou ou tomou novas formas, mal se distinguindo um hippie de um mendigo sem ideologia ou de um adepto do imprevisível crack. Mas outra mudança radical foi a substituição do parco artesanato ainda subsistente por produtos chineses. Nas feiras há quase nada de artesanato, muitos chapéus no verão imitando com materiais grosseiros os chapéus panamá, cintos, bolsa, pulseira, sandálias, colares, tudo da nova cultura oriental. Foi o desmonte de qualquer símbolo do alternativo e contestatário. Aí também se abriu o comércio mundial que parece abarcar tudo, inclusive o artesanato. È uma pena em muitos sentidos. Mas restaram o pão integral e o acarajé, os hare-krishna, um ou outro remanescente de um artesanato genuíno.

                                                               Igor Zanoni 

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Nostalgia

Nostalgia

A saudade, apesar ou por causa dos nossos contextos, mais particulares ou mais gerais, remete ao passado, imaginando o quanto foi bom, mais talvez do que realmente foi na época. O termo saudosismo foi cunhado para demarcar, positiva ou negativamente, sentimentos e situações que gostaríamos de reviver, um sociólogo ou um psicanalista diria por quê. No Brasil, ao tempo do samba-canção, tudo era saudade, e as músicas falavam de amores perdidos marcando para sempre a possibilidade de voltar a amar, a loucura em que o amor pode se transformar, a casinha sem teto na qual se vivia tão bem olhando as estrelas e assim por diante. Nos governos JK e Jango as coisas começaram a mudar e brotaram sensibilidades menos provincianas, do tempo em que a tragédia era a glória de uma vida. João Gilberto cantou: “Chega de saudade!”. Há o velho sob a capa do novo, atualizando-se retrogradamente em ralações de opressão e despossessão. Isto quem mostra é Glauber Rocha. Aí o samba-canção ficou uma coisa irremediavelmente velha, anacrônica, saudade para saudosistas ou sadomasoquistas. Nostalgia, por sua vez, é a capacidade de pensar, nos momentos cruciais da história, a possibilidade de mudança, de superar o atraso, a desrazão, a prepotência, o mandonismo, a graça concedida do alto, por quem manda. È também a possibilidade de ver que atores sociais poderiam levar adiante essas mudanças. Esclarecendo uma distinção semântica, e por isso muito importante, sou nostálgico de muita pouca, saudoso de nenhuma .

                                                              Igor Zanoni

Cavalheiro


o doutor Francisco de Borja Magalhães
com uma vasta folha de serviços
ao estado do Paraná e ao Brasil
comunista por convicção ponderada
como todo comunista nosso
defensor intransigente
 da burguesia nacional
um perfeito cavalheiro
atrás de cinco centímetros da
sua cigarrilha
e cinquenta da sua acurada prudência
conversava com sabedoria e urbanidade
uma referência quando havia brigas
nos lugares onde trabalhava
sorrindo sempre dos exaltados
nunca dizendo tudo o que pensava
quando adoeceu sua conversa
ficou amalucada
mas não menos urbana e sociável
como um Quincas Borba de esquerda
no asilo onde o puseram afinal
organizou os jornais disponíveis
e reuniões de conjuntura
com outros internos
que se irmanaram na crítica ao status quo
mostrando que a doidice
não deixou nunca o lastro de lucidez
que o equilibrava

                                                                  Igor Zanoni

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Igreja do Rosário


veja o senhor esta bela igreja colonial
no Largo de Ordem
do tempo em que esta havia
e ainda há de um certo
 e quase o mesmo modo
pintada de fresco cal azul e branco
cores do céu e de asas de anjo
na foto de um turista não se vê
uma que outra recente pichação
o mijo dos cães nos cantos
e dos pobres mais acima
e por todo lado
pobres que em qualquer hora
ali mais bebem que comem
e mais são maltratados
do que se podem tratar
e também ao tempo dormem
eles que a igreja deveria recolher
tivesse a igreja vindo como Cristo
para os pobres e não para os cobres
e já por aí se entende
a ordem no Largo da Ordem

                                            Igor Zanoni

Amor


eu não tenho esse gesto
esse jeito sempre amoroso
depende do rosto que mostra
através do meu rosto
essa Fúria que me toma


                                                   Igor Zanoni

Pensar

Pensar
 
1
 
Ontem percebi uma propedêutica da comunidade Hare-Krishna enquanto almoçava a excelente comida indiana que ela serve aos domingos. Quando eu esperava ficar pronta a refeição, um rapaz gentilmente ofereceu ao meu filho e a mim um suco natural de uva com gengibre e açúcar mascavo. Meu filho agradeceu e recusou, e o devoto perguntou ao Tiago: “Este é um dos sucos que será servido na refeição. Você não gosta? Quer que traga outro? Como você quer seu suco?”. Mas o Tiago não queria estragar o apetite e continuou recusando, até se criar uma situação em que tive de intervir: “Não há contra o suco, amigo, apenas meu filho tem suas regras para comer”. “Mais tarde, após tomar os sucos dulcíssimos e comer um bolinho indiano feito com leite condensado e passado na frigideira com manteiga clarificada quente, à saída perguntei brincando a uma devota que recebeu nosso dinheiro:” Puxa! Vocês gostam mesmo de coisas doces!”“. Ela rebateu de pronto: “Gostamos! Alguma coisa não foi do seu agrado? Como podemos atendê-lo ao seu gosto?”. Esta é a convenção: oferecer o que eles usam no seu padrão de vida com gentileza, mas perguntando se você precisa de alguma concessão especial. Pelo menos por enquanto, na sua condição de visita.
 
2
 
Os mantras indianos antigos se repetem monotonamente ao infinito. O som em sânscrito é agradável, mas quando cantados em português soam para nós com uma retórica mal escrita e mesmo velha.
 
3
 
Muitos precisam seguir preceitos com obediência, para obter paz e encontrar um caminho para suportar a vida. Mais difícil e mais ao nosso controle é examinar esta vida com paciência, mesmo que se vista sem qualquer convenção nem use uma imagística com que não atinaríamos sós, pois de fato não pertence a nós, como não pertencem ainda os frutos da reflexão. Esta é nossa atualidade e nossa autenticidade.
 
                                                                     Igor Zanoni
 
 
 


terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Sonhos


à medida que se envelhece
tudo em volta parece
já sonhado um dia
assim já sonhamos
o crocodilo o panda o sonho
mas agora nos centramos
no fundamental
sonhamos repetidas vezes
com terror
não terminar o curso
em que nos graduamos
a necessidade de arrumar goteiras
no telhado que já trocamos
de encontrar a casa da infância
cujo terreno há muito deu lugar
a um condomínio para pessoas alheias

                                  Igor Zanoni