quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Solidão



com seis anos fui matriculado em um jardim-de-infância no bosque perto de casa, no castelo. eu ia sozinho e tinha de passar frente a uma grande tenda onde moravam ciganos. tinha medo de que me roubassem ou apenas medo frente a suas roupas coloridas, muitas joias e aqueles tachos de cobre que vendiam nas ruas e que mamãe nunca comprou. passado um pouco esse medo, a tarde toda no jardim não havia nada para fazer. não me alfabetizaram, aliás não precisavam porque papai já havia cuidado disso, nunca me deram nada para ler. era um jardim bonito, com muitos jatobás, nessa época minha boca estava o tempo todo verde da massa dos jatobás. em casa eu lia monteiro lobato e adaptações de romances célebres, mas no jardim havia livros que eu não compreendia, porque viam em nós crianças que eu pelo menos não era. lembro muito de um livro de capa azul, parecia católico, com o título “ um bom diabrete”. minha religião na época era deduzida do espiritualismo positivista de meu pai, dos versículos de Paulo a Timóteo que minha avó me fazia decorar nas férias e do pouco que compreendia sobre Abraham e os cáldels em uma missão batista norte-americana na qual ganhei meu primeiro Novo-Testamento, grande e de capa dura vermelha com título dourado.  eu nunca havia ouvido falar ao certo em diabos e menos em diabretes, achei aquilo assustador. não li o livro e comecei detestando a capa. minha liberdade intelectual se estendia a outras áreas. por exemplo, não me lembro se tive uma professora naquele ano. lembro do lanche que serviam: café com leite doce com nata e pãozinho  com uma banana dentro. eu tomava nescau em casa e comia pão pullman  com amendocrem,  não entendi o lanche, que nunca comi. não era um jardim pobre ou para crianças pobres, não havia crianças pobres no castelo. era antes angustiante e incompreensível. lembro de duas ocorrências felizes em tudo. a primeira foi  a amizade com uma menina que usava óculos. foi a primeira menina que vi usando óculos, gostei muito, mais dos óculos que dela acho, mas eu não separei ambos. lembro ainda perfeitamente de seu rostinho. a outra ocorrência : a cozinheira, que fazia merendas também para os que trabalhavam ali, uma vez me ofereceu sem eu saber por quê uma queijadinha. suspeitei que as professoras não tomavam o mesmo lanche que nós.assim, na  minha infância que se ia eu encontrava pequenos prodígios como meninas com óculos, jatobás e queijadinhas amenizando os dias bestas. mas foram parcos prodígios para tantos dias bestas.


                                                                                                                                                               Igor Zanoni

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