sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Cacos


naqueles dias meu pequeno universo partiu-se em cacos confusos, um caos que exigia uma nova criação. eu sabia que, embora andando lento e cuidadoso, havia sob mim a calçada frente à minha casa, mas já a calçada havia se tornado pedras que era preciso examinar uma a uma, seu formato, cor, textura, a reflexão do sol, num fascínio inesgotável. só assim podia reconstruir primeiro o conceito primordial de pedra, ainda que isolada de outras pedras que há por todo o planeta, a pedra que estava frente à minha casa. poder redescobrir um caminho para a esquina exigia examinar outras pedras, da mesma forma, através de um método que eu não compreendia mas vivia. assim procurava reconstruir minha percepção e juízo de experiências como almoçar, ler um jornal, ficar acordado ou dormir, ou talvez fundá-las sobre algo não dado e costumeiro, mas sobre um solo vital, fruto de uma paciente contemplação. era impossível naqueles dias falar, decidir, atos comuns que se transtornaram em inúmeras dificuldades impossíveis de dividir, ou perceber as mais simples sobre as quais pudesse recomeçar o entendimento. chegou a mim a percepção das bordas da minha vida, e a precisão de reconstrui-la sobre algo com uma lógica pessoal, o meu Tao que não podia ser dito, mas era necessário com paciência e infindo trabalho procurar ainda que a procura fosse cansativa e obscura. lentamente passava o Bojador, além de toda minha dor. não tive nenhuma escolha, e sei que o meu universo é frágil e pode de novo se partir e exigir de mim viagens para as quais não estou de modo algum preparado, mas terei de recomeçar.


                                                                              Igor Zanoni

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Almíscar


1
é difícil saber quando devo por uma calça no cesto de roupa suja. em princípio, para mim uma blusa deve ser trocada todo dia, mas as calças podem ser trocadas com menos frequência. isso depende do calor que faz, se você usou de forma a deixar a calça amassada demais, etc. um jeans em geral pode ser usado vários dias, pois isto combina com o estilo da roupa. eu uso muito jeans, mas se ponho um no cesto preciso ver quantos dias ele vai ficará ali até ser lavado. minha diarista lava tudo na terça feira, e passa em das noites seguintes na qual ela esteja disponível. se eu uso uma calça na segunda, é óbvio que não preciso colocá-la para ser lavada já no dia seguinte, mas aí eu vou  ter de fazer isso talvez na quarta, se for verão, e ela vai ficar quase uma semana suja até a diarista voltar. vou ter de usar outra calça nos dias seguintes, e estará suficientemente suja para poder ser posta no cesto no domingo ou segunda, o que é razoável. mas nem sempre as coisas correm assim, e eu me perco um pouco. por exemplo, as cores claras sujam logo, as calças com elastano não amassam tanto, então é preciso ter cuidado tanto ao usar quanto ao comprar as calças. para não gastar muito e ter um guarda roupa apropriado, convém ao sair olhar as lojas, ver os preços, o que está em promoção, como é a calça, pois talvez uma nova seja necessária de repente. mas quando se compra efetivamente uma nova calça, surge uma tendência de contar quantas cuecas boas eu tenho, quantas meias, se as camisas estão apresentáveis, se combinam com as calças, e aí o cartão da Pernambucanas fica um absurdo.

2
há uma tendência se para fazer os desodorantes masculinos, assim como o creme pós barba ou o sabonete líquido para o banho, e assim por diante, com perfumes fortes e nada doces, como os de almíscar ou patchuli. esses produtos vêm em uma embalagem escura, muitas vezes cinza escuro, com letras prateadas grandes anunciando: FOR MEN. eu procuro sempre uma opção mais tradicional e menos usada, como sabonete Johnson, Acqua-velva e leite de rosas, porque acho que os laboratórios do ramos vem criando uma imagem do homem que chega e já faz e resolve, um homem fatal para mulheres fatais.

                                              Igor Zanoni

                                       

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Obsessão


Obsessão

1
ao envelhecer passei a lembrar
nomes de amigos de infância
os filmes que assistia no cine Rex com minha mãe
 livros que li no Instituto Santa Maria
ainda no primário
vêm à minha mente imagens e acontecimentos
comovedores nesta época da vida
mas não confio bem neles
acho que os invento sem querer
num doce e renovado hábito de mentir
sobre qual foi e qual é a minha vida

2
se um homem é diligente sóbrio
trabalhador cumpre seus devedores
não tem nenhum vício
vai sempre à missa e nunca à zona
é um baú de virtudes
ou um neurótico obsessivo-compulsivo
um perigo social

                                                         Igor Zanoni

Preocupação


um dos vários tipos, entre engraçados e sem juízo, que toda cidade tem, era em Curitiba um homem alto e corpulento, talvez com uns quarenta anos quando o conheci e hoje com cerca de dez anos a mais. o dia todo batia ponto no calçadão da rua XV, no centro envelhecido onde o povão passa quase todo dia. calado andava de cima para baixo, e a cada cinco ou dez minutos dizia uma frase com algum sentido, mas não muito, com uma voz muito forte lembrando o martelar de uma araponga. não se comunicava com ninguém, pela aparência não era pobre nem rico, não recebia dinheiro e parecia não atentar em quase nada na rua. à tardinha sumia, tomando o ligeirinho Santa Felicidade-Bairro Alto. este último bairro era seu destino, descendo no terminal de ônibus. caminhava para  uma rua que nunca descobri qual fosse e nunca o vi por perto de minha casa, próxima do mesmo terminal. também no ônibus gritava suas frases, que soavam como uma advertência, e provavelmente eram, ainda que de sentido obscuro. passei um  tempo sem vê-lo, sumiu do centro e do ônibus, até certo dia, indo para a universidade onde leciono, redescobri-lo em um banco do mesmo ligeirinho. sóbrio, tranquilo, calado, o rosto relaxado, parou em algum ponto do caminho, sem seguir viagem até o centro. depois tornei a vê-lo muitas vezes, sempre sob a nova aparência e sempre no mesmo ônibus. minha reação não foi boa para mim, fiquei muito preocupado pensando na sua metamorfose. talvez estivesse medicado, ou frequentando uma clínica, não sei, mas ficaria mais satisfeito se ele continuasse nos seus antigos modos e nas suas intervenções no centro. mas não sei como se sente agora, como percebe sua nova vida, o que pensa em relação à antiga e de que modo o faz. talvez eu esteja me preocupando sem motivo, mas fiquei com a pulga atrás da orelha.

                                                         Igor Zanoni  

domingo, 26 de janeiro de 2014

Alô Terra!


1
no primário li e vi gravuras nos livros de geografia segundo os quais “ a Terra é redonda e achatada nos polos”. depois mais tarde um professor me disse seriamente que a Terra era totalmente redonda, mais redonda que uma bola de futebol. aí pensei como isso podia ser verdade se havia os Andes, os Himalaias etc. talvez para nós, que vivemos pisando o chão, a Terra não seja mesmo redonda, mas para um piloto a grande altura seja, foi a minha conclusão amadurecida após grandes meditações.

2
quando  vovó ia com vê Felippe a Campinas, ela  tirava sempre um tempo para que eu aprendesse e decorasse versículos bíblicos, para minha formação cristã. tinha preferência por versículos das cartas de Paulo a Timóteo, como:” Procura apresentar-te a Deus aprovado, como obreiro que não tem do que se envergonhar, que maneja bem a palavra da verdade”. assim eu deveria ser! com tal iniciação, nunca pude deixar de ser uma pessoa religiosa. quando adulto, decidi usando a razão que era ateu. passei um ano ateu, depois me arrependi e voltei a ser cristão. como devia saber minha vó, Salomão escreveu: “ Ensina a criança no caminho em que deve andar e ainda quando for velho não se apartará dele”. não tive escolha nem tenho agora. o máximo que posso fazer é meditar e ler sobre o que seriamente significa a Bíblia, a vida de Jesus, sua significação para hoje e assim por diante. mas tive uma sorte enorme de viver sete anos ao lado de um seminário das Irmãs Paulinas, com as quais conversava muito e me indicavam os autores mais importantes, nem sempre católicos. gostei muito dos teólogos da crise, bastante politizados, como Emil Brunner e Karl Barth. mais tarde conheci outros menos radicais como Joaquim Jeremias ou, o que sempre releio, Charles Harold Dodd. conheci todos eles fazendo as freiras gastarem seu tempo ocioso, comendo bolachas amanteigadas e tomando café com leite bem doce. uma delas me bajulou um dia dizendo que eu tinha vocação para ser profeta, o que é realmente um absurdo que só cabia no doce coração daquela irmã. percebi que muitas irmãs são esclarecida e até cultas, mas a privação de homens as torna carentes de afeto e um pouco ingênuas. então deu tudo certo e foi bom.

                                                        Igor Zanoni


Desertos


Salomão escreve nos Provérbios:
“não afaste o vinho da boca de quem sofre”
eu mesmo digo: não maldiga o bêbado
o viciado o que busca sempre o sexo
eles apenas denunciam o que somos
desertos carentes de monções
nossa necessidade que nos desequilibra
de prazer e desmedido contentamento

                                                           Igor Zanoni