Kurki foi uma das
pessoas de que mais gostei, embora a maioria sequer o compreendesse. sua
família era de origem finlandesa, e havia saído do seu país na época da guerra
com um nome fictício, algo como “duende” ou parecido. havia prestado concurso
na economia da Unicamp, e entendia muito de temas então pouco conhecidos, como
topologia. fui seu aluno no mestrado, nas aulas enchia a lousa de signos que eu
não entendia e ele pouco explicava, embora fizesse um esforço nesse sentido. morava
em São Paulo, e certa vez num momento da aula parou subitamente sua demonstração
dizendo que precisa ir para não perder o ônibus.depois o encontrei em Curitiba,
pois havia tido problemas na Unicamp por sua intermitente dificuldade de
trabalhar. o Instituto Paranaense de Desnvolvimento Econômico e Social fazia então
um grande diagnóstico sobre as transformações socioeconômicas do estado na
década de sesetenta, e eu também havia sido contratado para trabalhar nisso.
naquela época o estado pagava bem, e kurki , eu e outro amigo alugamos uma casa
grande e confortável no Jardim Social, que era o melhor e mais caro bairro da
cidade.comecei a descobrir sua incrível facilidade para tratar de temas
complexos sobre os quais pouco havia lido. um anoite um amigo que coordenava o
diagnóstico visitando de quando em quando Curitiba e estudava muito o pensamento
de Marx, começou a falar que não entendia bem o conceito de tempo neste grande
pensador. kurki começou a fazer alguns raciocínios e a desenvolvê-los, acabando
por dar uma verdadeira aula sobre algo em que nunca pensara sistematicamente.
esse amigo rotulou kurki de “gênio louco”, o que era a mais cristalina verde.
mas como não consegue trabalhar também no Instituto, depois de algum tempo
voltou à Unicamp onde continuou a trabalhar com muitas licenças médicas interrompendo
seus cursos e pesquisas. quando fui fazer o doutorado, curiosamente e sem
saber, aluguei uma casa no Castelo ao lado da de Kurki. foi o que bastou para
fazer do doutorado uma festa. estudei
mais com ele que na Unicamp, comecei a fazer psicanálise na mesma clínica que ele
e conversávamos sobre o mundo e mais um pouco. era muito avarento e decidiu
entrar na Justiça, ganhando uma liminar, contra os donos da casa que alugava,
que para ele estava precisando de reformas que não cabia a ele fazer. ficou comodamente
ali, sem sair ou atender à porta às vezes por uma semana, pensando obsessivamente
na vida e fumando sem parar. tinha um problema particular com seu pai, que
havia morrido de enfisema, e com sua mãe, cujo filho “não tinha coração para
ver sua dor”. depois de um tempo a casa estava um caos, no tempo das chuvas
ficava dias na
cama, único lugar onde a chuva não entrava na casa. de manhã, quando acordava
colocava uma caneca sobre o muro em frente à nossa cozinha para receber café
que Estelita lhe fazia. foi internado ali mais uma vez, no Hospital da
Unicamp, levado por mim e uma de suas duas antigas esposas. afinal perdeu a
casa e estava para ser demitido por justa causa quando o grande Waldir Quadros,
que dirigia o Instituto de Economia, conseguiu convencê-lo de que devia se
aposentar e de fato o aposentou. depois passou um tempo a viajar pelo interior
de São Paulo, com seu velho Corcel II, visitando os parentes de sua primeira
ex-esposa, que amara muito. vez ou outra me visitava em Curitiba, para onde eu
havia voltado e reatávamos conversas infindáveis. foi um grande amigo,
intelectual de primeira, mas poucos o entendiam e ele menos ainda. sobre Kurki
haveria ainda muito a contar, mas isso basta para esculpir sua legenda.
Igor Zanoni
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