sábado, 14 de fevereiro de 2015

A Bela Adormecida

mesmo neste mundo em degenerescência, como diziam os antigos mestres, encontro acontecimentos promissores. cansado e com a cabeça a mil, antes de me perder algo em mim me encosta e senta no murinho de casa, começo a respirar e os pensamentos se voltam para o jardim pequeno sob uma das janelas. há muito tempo ninguém cuida desse jardim, exceto o leandro, que todo mês vem ganhar seus cinquentinha mas só corta a grama, se posso chamar de grama a erva confusa que se mistura e fica de vários tamanhos até o dia em que é aparada como o corte de um recruta. a história desse rapaz é terrível para mim, já teve duas hepatites, foi despedido por tirar licença médica e com trinta anos cuida do filho já mocinho cortando jardins desse jeito despreparado. jamais reclamou, tem um fatalismo dos pobres de antigamente, mas com fatalismo e tudo tem seus instrumentos, uma grande clientela-pois quase não há jardineiros em curitiba- e leva seus instrumentos em um apresentável sedã vermelho.tenho de insistir para que ele aumente seu vencimento de vez em quando, pois ele calcula quantos fregueses pode perder se cobrar um pouquinho mais. mas a gasolina sobe, etc. e surge um consenso entre os tais fregueses de que está muito barato o corte da grama. aliás, há uma troca de informações sobre isso, assim como as diaristas sobem de modo mais ou menos consensual seu ganho, evitando competição danosa. mas, voltando ao jardim, há uma grande parte dele que ficou selvagem e o leandro não toca, com muitas espadas-de-são jorge  e babosas que meus filho mais velho plantou quando começou a perder cabelos. hoje realmente há babosas demais, lembram as figuras da história da bela adormecida cercada pela floresta asselvajada. sei que muitas meninas na escola onde trabalho se preocupam com o teor das histórias antigas, e em uma escola do primeiro grau houve uma redação e uma polêmica sobre se um homem, mesmo sendo príncipe, deve beijar uma mulher dormindo, ainda que seja princesa e deva acordar um dia, o povo de muito tempo atrás supunha que desse modo. enquanto me perco nessas observações vem-me a ideia de que algo foge na curitiba que se afoga na política e na dificuldade de se manter vivo, de que as ervas resistem, as babosas crescem, meu filho talvez venha ver-me um dia e quem sabe se descubra o modo adequado de cuidar de princesas enfeitiçadas sem ferir os brios das meninas de hoje.


                                                             Igor Zanoni

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